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Filosofia


A Fé e o lugar da razão e do debate
Júlio Sameiro

Muitas pessoas desistem de discutir crenças religiosas. Esta desistência pode ser provocada pelo cansaço, pelo medo de vermos as nossas crenças abaladas, ou para evitar os destemperos emocionais que, muitas vezes, acompanham tais discussões. Pode também resultar de uma posição filosófica que se faz acompanhar de razões. Uma dessas posições filosóficas dirá que, no fundo, não há nada para discutir. Arghumentará que crença e descrença não são coisas opostas mas sim paralelas. Um ponto comum a argumentos deste tipo é o de que a fé (tanto a do crente como a do descrente) não se prende a razões, porque o seu domínio não é o mesmo da razão.

Na primeira parte deste escrito vou apresentar uma analogia que, penso, permite esclarecer e dar força à tese do "paralelismo". Apontarei algumas das dificuldades desta tese mas que, avanço, não a destroem.

Na segunda parte, concluída a exploração da analogia, mostrarei por que razão é fácil apresentar argumentos fatais para outras formas de conceber as relações entre crença e descrença e, portanto, de conceber o papel do debate, da razão.

Como disse, este estudo parte de uma analogia. As analogias permitem-nos usar coisas mais conhecidas, simples, evidentes para pensarmos coisas menos evidentes. Mas têm limites (afinal estamos a destacar semelhanças em coisas diferentes). As diferenças são, muitas vezes, esquecidas e acabamos por pedir às analogias mais do que elas nos podem dar. O texto começará por explorar, tanto quanto eu for capaz, as semelhanças. O leitor pode sentir-se incomodado, nesta primeira fase, por não ver o texto fazer justiça às diferenças. Mas elas são abordadas depois.


I parte. A fé legitimada

1. A analogia: Crentes, ateus, agnósticos e fruidores de nuvens

Muitas pessoas aceitarão que que as atitudes do crente e a do não crente podem comparar-se à atitude de duas pessoas que estão a observar as nuvens: "Olha, ali vai um comboio a vapor!", "Não, é um elefante." A conclusão imediatamente sugerida: cada um tem a sua visão e pronto. Discutir é inútil. Um argumento deste tipo, é usado, muitas vezes, apenas para bloquear a discussão antes de ela degenerar em ataques pessoais. Mas penso que esta analogia entre observadores de nuvens por um lado, crentes e descrentes por outro, pode conter alguma verdade e, portanto, merece exame mais detalhado.

Em primeiro lugar, cada um dos nossos observadores de nuvens diz a verdade e tem a certeza de que a diz. De facto, se um deles quisesse levantar a dúvida e dissesse, com toda a seriedade, "A nuvem parece-me um elefante mas talvez esteja enganado e não me esteja a parecer um elefante", merecia uns açoites. Em segundo lugar, o observador de nuvens deve saber que também não pode pôr em dúvida a visão do outro - dizer algo como: "Aquilo parece-se com um elefante. Logo, deves estar enganado e aquilo não te está a parecer um comboio." só serviria para ofender.

Assim os observadores de nuvens devem reconhecer a possibilidade de visões alternativas, diferentes mas não propriamente contraditórias. Essas visões não podem ocorrer ao mesmo tempo na mesma pessoa mas não têm de se excluir em momentos diferentes ou em pessoas diferentes. O crente e o ateu parecem, nas suas discussões, estar em posição semelhante à de estes observadores de nuvens: cada um internamente seguro do que vê, cada um é incapaz de pôr em dúvida a sua visão e a visão do outro. Parece apenas que se enganam quanto à necessidade de reconhecer a possibilidade de visões alternativas...

Como podem dialogar ou discutir estes dois observadores de nuvens? Apesar de cada um dos observadores estar certo do que diz, sabe também que não pode exigir a concordância do outro. Se o observador tivesse, face a uma questão sobre factos, o mesmo grau de certeza, procuraria um argumento que obrigasse o outro a reconhecer a sua verdade. O argumento teria a forma: "Como aceitas isto, e isto e aquilo, então tens de aceitar x." Se o argumento estiver bem construído, as premissas (os isto, isto e aquilo que aceitas) serão suficientes para derivar a conclusão e tornam obrigatória a sua aceitação. Mas os argumentos não são aplicáveis neste caso. Se um dos lados acreditar que pode ou deve apresentar razões que tornem obrigatória a intuição do elefante ou do comboio a vapor está enganado. Não há maneira de provar que a nuvem se assemelha a um elefante. Só podemos tentar isto: sugerir e destacar indícios que levem o outro a partilhar a mesma visão. Esta situação ocorre porque a semelhança que ambos captam não faz parte do facto observado, não é uma explicação do facto, nem sequer uma descrição do facto - a semelhança deriva de um padrão acrescentado aos factos apesar de tal padrão se impor à nossa mente com a força de um facto. Por isso os argumentos falham o alvo neste caso: a apresentação dos indícios de que a nuvem se assemelha a um elefante não é suficiente para dar a imagem do elefante. Estou a pedir que a outra pessoa acrescente o resto, que suponho ser pouco, para obter tal imagem.

Também parece ser esta, muitas vezes, a situação do crente e do ateu: dada uma mesma colecção de factos, um vê neles a presença de Deus, outro a ausência. A descrição dos factos não pode dar razão ao crente ou ao ateu, tal como não a podia dar a quem vê um comboio ou um elefante nas nuvens. Mas o padrão (presença de Deus, ausência de Deus) com que um e outro captam os factos, é algo que se acrescenta aos factos ainda que com a mesma força dos factos. Se aceitarmos a analogia, concluiremos que o crente e o ateu não têm razões para discutir - apenas podem apresentar indícios, sugestões, na esperança de outro chegue a partilhar a sua visão. Mas estão errados quando trocam razões para obrigar o outro a reconhecer a verdade da sua posição.

Esta situação é por vezes assinalada como sendo um confronto de "verdades subjectivas". A expressão "verdade subjectiva" é infeliz mas parece-me aceitável: Se o observador de nuvens não estiver a brincar connosco ou a querer enganar-nos ele está a enunciar uma verdade e nada mais. Diz-se, no entanto, que tal verdade é "subjectiva" para assinalar o facto de que ele é um observador privilegiado: só ele pode captar directamente o nexo entre a sua afirmação "A nuvem parece-me x" e o facto de a nuvem lhe parecer x. Os outros observadores só podem avaliar a proposição na base num argumento construído com indícios externos. Por exemplo: "ele não costuma mentir; não há razões para eu pensar que a situação o levou a alterar esse hábito; com os indícios que ele me deu, com os pontos da nuvem que ele destacou eu até posso desenhar um elefante - apesar de o esquema me parecer tão forçado como pensar que a Ursa Maior se assemelha a uma Ursa... Logo, deve ser verdade que aquilo lhe parece um elefante." Quem ajuíza de acordo com este esquema, pode, claro, continuar sem ver o elefante na nuvem, mas já têm razões para acreditar que o outro vê o elefante. Muitas vezes, "subjectivo" significa vago, opinioso, arbitrário, caprichoso, etc. Rejeitemos este significado: não é de capricho que se trata aqui - se a nuvem me parece um elefante então esta semelhança impõe-se-me como se me impõe qualquer outro facto. Continuarei a usar "verdade subjectiva" para descrever os enunciados dos observadores de nuvens.

Que dizer se um dos observadores de nuvens, talvez seguindo os indícios e sugestões do outro, passar a ver o elefante? Dentro da nossa analogia, as pessoas não mudam para crentes ou descrentes por aderirem a provas da sua crença ou da sua descrença - apenas se convertem. Quer dizer: a visão que se lhes impõe é outra. Os indícios e sugestões que antecederam a mudança não podem ser interpretados como provas - é preciso um padrão que reúne tais elementos numa visão clara da presença ou ausência de Deus, padrão que não está nas supostas provas.

Esta situação é semelhante à que enfrentamos com algumas ilusões de óptica - ora vemos, com toda a certeza, uma coisa, ora vemos com igual certeza, outra - mas não vemos as duas coisas ao mesmo tempo. "Saltamos" de uma visão para outra que se nos impõe. Assim, com esforço maior ou menor, podemos ver ora o comboio, ora o elefante na nuvem. Estas súbitas mudanças de visão adaptam-se bem à ideia de "conversão" religiosa. As pessoas não mudam, parece, de crentes para descrentes por causa de provas - apenas se convertem. Em matéria de Deus é, depois de termos mudado de visão, pensarmos que a visão anterior era tolice... De acordo com a nossa analogia este exclusivismo não é autorizado: quando tenho uma visão não estou a ter a outra, mas as duas são igualmente legítimas em diferentes momentos da mesma pessoa ou em diferentes pessoas.

A nossa analogia, que apresenta o teísmo e o ateísmo como visões que se impõem às pessoas com a força da objectividade, mas para as quais não se podem apresentar provas, põe de lado uma certa forma de agnosticismo. Este agnóstico argumenta que, não havendo provas nem de que há Deus e nem de que não O há, então nem a fé nem o ateísmo se justificam. Para o este agnóstico, não havendo provas, afirmar-se crente ou ateu é teimosia, ilusão, vício subjectivo, irracional. Aceitaremos, claro, que as visões do crente ou do ateu dependem do modo como as suas mentes funcionam. Mas isso não permite equipará-la a doenças da subjectividade nas quais dizemos que a pessoa delira e vê irrealidades ... Não há nada de errado, ilusório ou vicioso na cena em que uma pessoa vê uma nuvem semelhante a um comboio a vapor, ao lado de outra que vê um elefante na mesma nuvem. Ao condenar o crente e o descrente, o agnóstico não percebeu a interessante característica desta situação - a de nela subjectividade e objectividade não se apresentarem como naquelas situações em que faz sentido pedir provas.

Se defendermos que há analogia entre os observadores de nuvens, por um lado, e o crente e o ateu, por outro, acharemos que um agnóstico atinado dirá algo como: um vê a presença de Deus, outro vê a ausência de Deus, eu não vejo nem uma coisa nem outra, Deus está pura e simplesmente fora de questão na minha visão da realidade. A diferença entre esta forma de agnosticismo e a anterior, é que este agnóstico concede que não é por falta de provas ou razões que vê ou não vê a presença ou a ausência de Deus, mas devido, precisamente, aos mesmos mecanismos ou processos que levaram o crente a crer, e o descrente a descrer. Este agnóstico parece um ateu! Mas há uma diferença capital: a pergunta pela presença ou ausência de Deus está incluída na sua visão do mundo do ateu e a resposta, também incluída, é não. No caso deste agnóstico não há tal pergunta nem tal resposta.

Se pudermos defender que a analogia é legítima, parece que ficamos neste pé: as visões alternativas do mundo - a do crente, a do ateu, a do agnóstico -, não se tocam porque são incompatíveis numa mesma pessoa, ao mesmo tempo, mas não são contraditórias: são alternativas legítimas, paralelas. As visões do mundo são padrões que se acrescentam aos factos, têm implicações na maneira das pessoas avaliarem e viverem os factos, mas não são teorias sobre o mundo, isto é, não pretendem explicar factos. Como não são teorias explicativas rivais, não é possível que a crítica mútua e o apelo aos factos possam estabelecer a verdade de alguma dessas visões derrotando as outras. As visões do mundo originam certezas legítimas, porque se impõem ao sujeito com a força da objectividade, mas estão ao abrigo do exame crítico, sem que isso implique uma patologia da subjectividade.

Falta perguntar agora se as crenças ou visões religiosa ou ateísta do mundo poderão mesmo ser este tipo.

A resposta leva-nos a sondar os limites da nossa analogia.


2. Limites da analogia?

Temos agora de ver se não estamos a extrair mais das analogia do que ela permite.

O fruidor de semelhanças não pode reclamar nenhum conteúdo cognitivo para sua fruição (por isso deixei de falar de observadores de nuvens e passei a falar de fruidores de nuvens a propósito da descoberta das semelhanças). A semelhança das nuvens com comboios e elefantes não acrescenta coisa alguma ao conhecimento das nuvens. O fruidor de nuvens pode explorar indefinidamente as semelhanças, pode criar técnicas de fruição, truques pelos quais pode captar muito mais semelhanças e retirará mais prazer das suas observações. Mas sabe que o que se passa na sua mente não é descrição ou conhecimento de factos. Se contribuir com algum conteúdo para a investigação científica, por exemplo, isso será uma contribuição marginal à sua actividade predilecta, a de descobrir semelhanças. Uma contribuição poderá estar ao nível da atitude: o fruidor de nuvens pode tornar-se um investigador de nuvens e dos fenómenos meteorológicos em geral. Neste caso a sua visão das semelhanças influencia o modo como avalia e vive os acontecimentos e, por isso, motiva para o conhecimento mas não é conhecimento.

Ora o mesmo não parece acontecer com os conteúdos da fé. Estamos habituados a ver a fé religiosa estender-se aos factos: Deus criou o mundo; Isto ou aquilo foi milagre; O 3º segredo de Fátima referia-se ao atentado ao Papa; O comunismo falhou por ter posto Cristo de lado; A igreja X é a Verdadeira Igreja; A Bíblia contém factos históricos (ao lado de histórias para edificação); etc. Com a nossa analogia, as frases "Vejo Deus!", "Vejo que não vejo Deus!", "Não vejo uma coisa nem outra!" designavam visões diferentes, incompatíveis em simultâneo, mas como alternativas igualmente legítimas. Mas, desde que a fé se estenda aos factos e tenha implicações na sua interpretação objectiva, os efeitos da nossa analogia cessam. Pensar de outro modo seria estranho: iremos ao ponto de dizer que, na discussão das relações entre fé e razão, estamos numa área onde o princípio de contradição foi abolido? Se estamos a falar de factos e não de visões do mundo, poderemos sustentar que as frases "Josué fez parar o Sol" e "Josué não poderia ter feito parar o Sol" podem ser igualmente verdadeiras? Penso que não.

Além de se estender aos factos, a fé religiosa pretende, muitas vezes, ser a justificação de preceitos, normas, regras de conduta, critérios de decisão que devem governar as acções de todos. Também neste caso o conteúdo da fé se estende de uma forma que não pode ter justificação ao abrigo da nossa analogia.

O observador de nuvens capta uma semelhança e ele frui dessa semelhança, o crente capta um significado extra na existência (nos objectos, nas acções) que se lhe impõe, que tem efeitos emocionais e afectivos mas que não é relativo a existências. Assim, para a nossa analogia continuar válida, o crente teria de, para todas as ocasiões, manter a fé como algo que se acrescenta aos factos sem ser da ordem dos factos e originando uma atitude que pode ser legítima ainda que não universalizável.

Talvez não seja muito difícil, na prática, conceber o que seja esta espécie de fé. A pessoa pode olhar para o mundo e dizer: "Isto é tal e qual a obra de um Deus!" ou, mais simplesmente, "Vejo Deus!". Pode, nas suas vivências, considerar que é mais importante o que, em cada situação ou acto, a sua visão acrescenta ao mundo do que o conteúdo factual dessa visão. Muitos episódios das religiões concretas podem ilustrar e desenvolver este aspecto da fé. Quando S. Francisco de Assis tratava as aves por irmãs, não pretendia ser entendido à letra. As aves seriam suas irmãs "em Deus". O "facto" de a ave ser irmã, decorre da sua visão religiosa do mundo e não do facto. O significado religioso de "irmã" poderia ser mais poderoso, para ele, do que o significado mais trivial de "filha dos mesmo ser vivo", mas não tem de haver colisão de significados. Esta forma de fé terá ainda, ao nível da acção, efeitos que não têm de colidir com outras visões. Depois de ver a ave como irmã, é difícil imaginar Francisco a caçar e petiscar aves, mas, penso, não há razões para achar tal comportamento irracional e criticável. Por outro lado, se Francisco pretender universalizar essa regra não poderá, legitimamente, basear-se apenas na sua visão religiosa das aves. Acontece, porém, que as atitudes derivadas das visões religiosas do mundo manifestam padrões que tendem a consagrar-se em regras para todos. Não é difícil imaginar que Francisco e e os que partilhassem a sua visão adoptassem uma regra como "Não comas aves!" Qual o estatuto desta regra?

De acordo com a ideia de "verdade subjectiva" que continuamos a explorar, a regra não pode valer por si, só poderá valer como forma de dar conta de um aspecto de uma visão religiosa do mundo. Não faz muito sentido requerer, apenas na base dessa visão, um poder que que zele por ela. Se a pessoa não partilhar a visão religiosa de Francisco, a regra pode parecer-lhe absurda. Nesse caso, apelar a um poder apenas baseado nessa visão seria total arbitrariedade. Seriam necessárias razões objectivas (isto é discutíveis, na base de padrões comuns aos discutidores) para generalizar a regra; a visão religiosa, como verdade subjectiva, seria insuficiente para o efeito.

Devemos, portanto, aprofundar duas coisas:

a) o modo como o vocabulário religioso ganha a sua significação na própria visão religiosa do mundo, a ponto de termos usados fora dela só poderem ser usados na sua descrição como metáforas (veja-se o caso de "irmã ave"). Este ponto é importante: se quisermos manter a nossa analogia com os fruidores de nuvens, temos de concluir que muitas discussões de crenças religiosas estão equivocadas por não terem em conta as diferenças de significação.

b) a questão das regras ou preceitos religiosos. Esta questão é ainda mais importante: é típico o uso de máximas religiosas nas discussões públicas de assuntos morais e políticos. Não compreendo como tal coisa pode ser legítima e honesta. Invocar uma verdade subjectiva para dar conta de uma visão religiosa do mundo e justificá-la é legítimo mas pretender estender tais regras a todos nessa base é inaceitável.

Para aprofundarmos estes dois pontos proponho a análise de um episódio possível. Imaginemos esta cena: quatro pessoas, Francisco, dois companheiros franciscanos e um descrente. Estão longe do termo da sua caminhada e há 3 dias que não comem. Topam um belíssimo faisão de 10 Kg embrulhado numa espécie de armadilha natural. Devem ou não comer a ave? Vejamos o que se passa na mente de cada um dos viajantes. (Claro que qualquer semelhança entre estes Franscisco e franciscanos e Francisco e franciscanos históricos será coincidência. O mesmo para faisões de 10 Kg. Para o argumento basta que o leitor considere o meu relato algo de possível)

O que se passa na mente de Francisco é fácil de descrever: o problema "Devo ou não comer a irmã ave?" nem sequer chega a ser posto, não faz parte da sua visão religiosa da situação. Se estivesse só, Francisco pura e simplesmente libertaria a ave e morreria de lágrima no olho. O significado desta lágrima é subtil. Não é a lágrima de raiva ou impotência face a um mundo que depois de muitas derrotas, o derrota de vez daquela forma miserável. É a lágrima de comoção face à maravilha com que Deus o presenteou nos seus últimos momentos, e também um pouco de tristeza por abandonar tais maravilhas. Não se acha um Deus que deva viver eternamente, mas também não é um bicho acossado e aniquilado por um universo hostil. Isso pode perceber-se no relato das suas últimas palavras dirigidas aos seus companheiros:

<< "É certo!", reflectiu e disse mais uma vez "que nunca cheguei a compreender totalmente a obra divina. Mas vi o seguinte: a natureza e os homens, sobretudo estes, criam horrores Os homens dividem-se, combatem e aniquilam-se em busca da felicidade que acham ter de alcançar e defender contra os outros. Para atingirem esse estado recorrem a tudo, da sedução e engano à tortura. É assim que cresce a pobreza, a miséria moral e a nossa dificuldade em avistar algum bem no mundo. Mas, mesmo o homem que em toda a sua vida passou pelas maiores provações e que, agora, aguarda a execução de uma injusta pena de morte, um homem, portanto, cheio de ódio ao mundo que nunca o favoreceu, ódio aos outros que o roubaram, espoliaram e agora matam, e de ódio a si mesmo pela sua fraqueza que o pôs em tais apuros, mesmo esse homem, digo eu, poderia maravilhar-se à vista desta ave. Alguns comprometeriam esse momento, juntando-lhe um ranger de dentes e chorando de raiva por lhes irem roubar tais maravilhas. Outros, porém, veriam suspensa essa raiva e o seu ódio a tudo e talvez chorassem sobretudo ou apenas o mundo maravilhoso que iam perder!

Ressentimento, raiva e ódio simplesmente não caberiam nessa visão maravilhada. Não têm lá lugar. O ódio ao mundo não tem lugar porque o mundo se mostrou, pela ave, belo, bom e sagrado. Isso é incompreensível depois de tudo o que ele viveu. Mas pura e simplesmente não pode negar a paz, a reconciliação que lhe invadiu a alma. Esta suspensão do ódio diz: para além ou para aquém de toda a desgraça, o mundo é belo e bom, é divino. E não há razão para crer os outros, os odiados, os inimigos, não fossem capazes de partilhar a mesma mensagem divina. Assim como o meu ódio está ausente de tal visão, também vejo os outros a suspenderem o seu ódio em tal visão. Quer dizer: na visão desta beleza, todos vemos que para aquém ou para além de todo o ódio e de toda a divisão, somos irmãos. Isto é incompreensível, claro, e talvez haja uma culpa nessa visão: como pude trair-me? como pude reconciliar-me com os horrores da natureza? Como pude reconciliar-me com o irmão que mata o irmão? É incompreensível mas é assim: na visão desta beleza, vemos a beleza e bondade do mundo, e vemos que somos irmãos. E aquela culpa que pode acompanhar esta visão, é apenas orgulho tolo de quem resiste a si mesmo - no nosso fundo, mais ou menos soterrada, está a alma irmã da ave, irmã do irmão, já reconciliada mas à espera da reconciliação. A suspensão dos ódios e a reconciliação pode surgir na ave, pode estar num corajoso perdão, ou num nascimento, ou na língua de um cão. Pode mesmo estar nas igrejas...

Sem Deus, quer dizer, sem esta suspensão das fadigas e dos ódios, os homens só podem chorar por serem mortais. Mas não há morte! Eu não morro irmãos! Porque não sou este corpo amarrado ao que é seu, sou apenas uma alma, um fragmento do amor divino e esse fragmento eu já o depositei nessa grande ave e brilhará nas suas asas se a deixarem levantar voo ..." >> e mais não disse.

Analisemos a linguagem religiosa de Francisco. Pretendi mostrar que o discurso de Francisco, parecendo referir objectos e propriedades de objectos (Deus, almas, a bondade do mundo, imortalidade) que poderiam colidir com juízos factuais, está a referir apenas uma visão religiosa do mundo que não colide com os factos. Por exemplo: a referência à imortalidade não é mais do que a tentativa de fazer compreender porque a morte não o perturba como perturbaria quem não partilhasse da sua visão. A quem, depois de discutir racionalmente o assunto concluísse que não há imortalidade e chorasse por isso, Francisco pouco poderia dizer. No vocabulário de Francisco "imortalidade" significa apenas: "a morte não é problema" . Não tem de significar: "sou, para além da aparência, do visível, uma coisa invisível que não morre". O mesmo se aplica a "alma". Com este termo Francisco diz: o que há de importante numa pessoa é o amor divino, ou seja, aquilo que liberta do ódio, do ressentimento e do apego e deixa de ver o mundo como belo, bom e sagrado. Ora, o amante não separa o seu destino do destino da coisa amada. Logo, conclui Francisco, não morro porque a ave (o belo, o bom e o sagrado) continua.

Alguma resistência poderia ser oferecida a esta visão do "eu". Como pode Francisco dizer que não morre se a sua consciência individual é aniquilada? Ou dirá Francisco que a alma, o que sobrevive, é esse eu autoconsciente? Francisco poderia retorquir, se fosse dado à discussão filosófica, que a pergunta revela ainda a preocupação do apego. Que é o eu que em nós põe tal pergunta como definitiva e derradeira? Resposta: um eu que se apega ao que tem ou quer ter e que, por isso, quer ter-se a si mesmo. Quem diz: eu sou mortal porque com a morte perco a minha autoconsciência, diz: este eu só tem sentido e existe de uma maneira - apegado a si mesmo, sendo senhor de si mesmo, tendo-se a si mesmo. Mas Francisco não é dado às coisas da filosofia e, por isso, dirá simplesmente: "Caramba! És muito bem capaz de imaginar que os pais podem morrer com alguma tristeza, é certo, mas também em paz se virem os seus filhos encaminhados para uma vida recta e feliz. Porque não estão apegados a um "eu" que distingam da vida dos seus filhos. É a sua alma, ou seja, o seu amor, que os liberta do apego a si mesmos! Não se distinguem dos seus filhos, estes continuam, logo, eles continuam!" Depois desta clara explicação de Francisco só temos de imaginar um amor que se estenda a toda a criação porque ela é bela, boa e sagrada para compreendermos porque ele se acha "imortal". A minha hipótese é, portanto, esta: se interpretamos o vocabulário religioso aparentemente factual como sendo apenas analógico a tese da "dupla verdade" pode sustentar-se.

Analisemos agora o papel das regras religiosas neste episódio.

Atrás levantei a questão do estatuto da regra destes franciscanos imaginários "Não comas aves!". Aparentemente ela foi seguida por Francisco. Mas a "obediência" foi determinada não pela regra ou por um poder que a faça valer, mas pela sua visão religiosa da situação. Francisco não obedeceu a uma regra - nós é que podemos descrever o seu acto como se ele tivesse obedecido. E, enquanto o acto derivou dessa visão, não vejo que tipo de crítica lhe pode ser dirigida, ou que tipo de discussão pode ela levantar. Podemos discutir até que ponto é legítimo, aceitável (e recomendável) que uma pessoa se deixe morrer podendo evitá-lo com a "refeição" à frente. Mas não atirarei a primeira pedra. A atitude deste Francisco parece-me em total sintonia com uma visão religiosa do mundo que, por não se ter comprometido com factos e normas, não entra em conflito com o respeito devido aos seus semelhantes e, pelo contrário, engendraria, em numerosas situações, actos que uma pessoa sensata aceitaria.

Mas a situação não é muito clara: que fazer a um grupo de 100 pessoas que acham ser seu dever morrer em grupo para não ferirem os irmãos animais, as irmãs plantas e e as irmãs pedras? E se o grupo incluir crianças? Toleramos? A situação nada tem de implausível - já assistimos a suicídios colectivos por motivos religiosos. Com um pouco de imaginação modificamos o relato de Francisco, exageramos a sua sensibilidade à beleza até à beira da loucura (podemos imaginá-lo horas a descrever a beleza dos veios de uma pedra onde, a custo, se desenvolve uma pequena planta...), pomos não um mas muitos franciscos lunáticos e o suicídio colectivo prepara-se. Que fazemos? Não vejo como é possível responder sem manter "a religião nos limites da simples razão". Uma resposta como "uma fé autêntica não chegaria a tais extremos e eu sei isso porque é a minha fé que me o diz" não é séria e será recebida à pedrada. Parece-me simplesmente que as visões religiosas do mundo têm de ser "vigiadas", a sua compatibilidade com padrões racionais, isto é, de discutibilidade, deve ser determinada e o resultado dessa vigilância deve ter efeitos. Uma boa dose de tolerância deverá, claro, ser prevista. Posso tolerar, talvez, o "suicídio" de Francisco mas não me parece tolerável, por exemplo, extrair do seu acto uma regra que outros, mesmo os membros de uma comunidade religiosa devam seguir.

Admitamos que o problema possa ter uma solução (a esboçada ou outra) e investiguemos mais um pouco a questão das regras. Regressemos aos dois outros franciscanos. Estão em apuros. Sentem-se em pecado: partilham a visão de Francisco, a existência é bela boa e divina mas... a fome é negra. Ouvem milhentas vozes desencontradas: como podem hesitar? Vão abandonar tudo, família, amigos, a Missão por causa de uma ave? A ave não será um presente de Deus para os esfomeados? A beleza da ave não é a prova que só pode tratar-se de uma oferta divina?... Sofismas inúteis. Não é assim a sua visão religiosa do mundo, a ave é irmã e aqueles pensamentos são pecado... mas a fome aperta. Um deles acabou por apelar à regra "Não comas aves!". A regra é sagrada, as outras falas são humanas, por isso, resistiu e morreu também. O outro franciscano partilhou o repasto com o descrente. Deste franciscano falaremos adiante, do descrente pouco há a dizer: pura e simplesmente não lhe passou pela cabeça uma razão válida, nem parecida com válida, para poupar a ave à sua custa.

O primiero franciscano, para a sua decisão final, apelou à regra. Fez bem? é legítimo? Foi consequente ou inconsequente?

Dada a sua visão religiosa do mundo, da qual a decisão de não comer a ave devia emergir espontaneamente, toda a motivação adicional para seguir a regra parece supérflua e um borrão na pintura. Quais podem ser os motivos adicionais? A reputação? Quer dizer, o reconhecimento, pelos que vão ficar, da força de carácter, da fidelidade, etc? Da coragem que lhe permite manter as ideias que mais preza em momentos difíceis? Medo de alguma represália?

Estas razões ou motivações não são satisfatórias. O cuidado com a reputação não faz parte de uma visão do mundo como a do Francisco e que este franciscano, pelo menos em parte, partilhava. A "coragem" para continuar a sustentar ideias que por si mesmas já não são motivação suficiente é muitas vezes orgulho tolo. Mas talvez haja uma forma positiva de entender o uso da regra por este franciscano. Na situação não era suficientemente forte a "fé", isto é, a visão religiosa que o deveria levar a decidir, sem dúvidas nem hesitações. Mas já viveu muitas vezes essa visão e sabe que ela vale. Sabe também que a atitude de Francisco está justificadíssima por essa visão. "Sabe", portanto, pela sua fé ou visão religiosa, que a fraqueza não é da regra mas sim sua. Aliás, é isso mesmo que lhe é dito por um aspecto da sua visão religiosa da situação - a consciência do pecado. Hesitar era já, na situação, e ferir-se a si mesmo, à sua própria e irrecusável visão religiosa do mundo, e não uma regra que a razão, a opinião pública ou os poderes devam fazer valer. A regra pode ter-lhe aparecido com o peso adicional que adquiriu no culto partilhado em comunidade. Mas podemos ainda admitir que ele não a fez valer apenas pelo poder que tal culto lhe acrescentou, mas sim porque essa comunidade faz parte e é um ingrediente essencial da sua visão religiosa. Neste caso o uso da norma, penso, teria ainda alguma espontaneidade. É claro que estamos numa situação em que legitimidade ou ilegitimidade parecem distinguir-se por uma levíssima diferença de tonalidade e de significado. Mas talvez a vida seja assim.

Ganharemos mais um pouco regressando ao terceiro franciscano. Vejo duas hipóteses para ele. Na primeira hipótese comeu a ave com profundo mal estar. Comeu-a temperada com o sentimento do pecado.

Este sentimento é "legítimo", justificável? Se não há razões para, a priori, desvalorizarmos a visão religiosa do franciscano, então não há razões para ilegitimarmos este sentimento ou para o compararmos com uma moral racional, ou para o opormos ao sentimento do dever não cumprido. Quer dizer, não há lugar para perguntas do tipo: "Moral religiosa, moral racional - semelhanças e diferenças, vantagens e desvantagens." Mesmo admitindo que não há razões terminantes para morrermos em vez da ave, daí não se conclui que o sentimento de pecado seja uma coisa vaga ou irracional ou tola. Ao comer a ave o franciscano agiu contra a sua visão religiosa do que o mundo, as pessoas e as aves são. Agiu contra si-próprio e isso é o pecado. E não propriamente o ter agido contra uma regra que deve valer para todos. Caso em que a regra deveria poder ser discutida fora da visão da religiosa a que pertence. Se eu achar esta pintura bela, mesmo que seja o único a achar que ela é mesmo uma pintura e tão extraordinária que merece protecção, sentir-me-ei estúpido e "pecaminoso", se a rasgar num momento de raiva. Qualquer discurso do género "deixa lá... porque ... e porque ...." pode consolar mas não pode justificar o acto ou injustificar o sentimento do "pecado".

A segunda hipótese para este franciscano: pura e simplesmente perdeu a fé, a sua visão religiosa do mundo foi-se como se vão muitas outras fantasias da adolescência... As suas anteriores experiências religiosas passaram a ser apenas experiências algo especiais mas no meio de muitas outras no conjunto da sua vida. Dessas experiências religiosas já não deriva nada que se oponha a este raciocínio: estou a morrer de fome. Não há razões para não comer aquela ave. Vou comê-la. Pode haver alguma estranheza mas já não há o sentiemnto de pecado. Neste caso invocar a regra "Não comas aves!" seria tão adequado como invocá-la para levar os descrentes a não comer a ave.

Quero concluir: também no domínio das normas ou regras para a acção a tese do paralelismo pode valer desde que a regra religiosa simplesmente exprima um aspecto da visão religiosa do mundo e não procure estender a sua validade para além dessa visão.

Espero ter mostrado o que, de momento e até maior esclarecimento, sou capaz de entender por uma forma de fé legítima: uma visão do mundo que impõe ao crente com a força da objectividade; uma visão subjectiva mas que não tem de colidir com os critérios da objectividade; uma visão religiosa da acção mas que não tem de colidir com critérios morais; uma visão que pode originar um discurso próprio mas analógico.

Mas não me parece que muitos crentes possam aceitar esta visão da fé. A minha descrição a fé deve, para a maioria, aparecer reduzida a um simples modo de ver, mais a uma mistura de sentimentos morais e estéticos do que à Verdade religiosa. Quando São Francisco de Assis vê Deus por toda a parte e, por isso, chama irmãs às aves podemos interpretar isto como o Deus adjectivo: caramba! Isto é divino! No mesmo sentido em que eu, sendo ateu, posso dizer "Este bacalhau é divino!" ou "Esta música é divina!" - neste caso estou a falar da minha maneira de sentir e viver os acontecimentos e não pretendo proferir verdades sobre os factos em si. Estou a dizer: "Este bacalhau sabe-me como se um ser supremamente poderoso e absolutamente conhecedor dos meus gostos o tivesse inventado para mim". Simplesmente não vejo como é que posso eliminar aquele como se, ou seja não vejo como tornar o adjectivo em substantivo. Talvez algum crente me queira esclarecer. Enquanto me faltar tal esclarecimento, tenho de continuar a considerar as formas de fé que não se apresentam como discurso "paralelo" e que se apresentam como verdades que derrotam as alternativas proclamando-as falsas uma forma de arrogância. Daí a II Parte, destinada a mostrar o absurdo e os riscos dessa arrogância.


II Parte: a fé aberrante e o argumento do infanticídio

Na catequese, de que era quase impossível uma pessoa livrar-se no meu tempo, aprendi que há o inferno para os péssimos, o purgatório (uma espécie de inferno menos quente) para os safáveis expiarem as culpas e, finalmente, o Céu para os bons e para os safáveis já tostados. Também aprendi que o recém-nascido nasce com a culpa pelo que, se morrer cedo e sem baptismo, terá de passar pelo purgatório. (Diga-se, de passagem, que acho esta doutrina monstruosa - se eu acreditasse na existência de tal Deus, juntava-me ao Diabo)

Nenhuma tentativa séria de provar a existência de tais coisas pode ser levada a cabo. Mas para milhões de cristãos isto era assim e era assim pela fé. Pela fé? A fé seria uma espécie de certeza sem provas mas garantida por Deus. Mas os recuos da Igreja Católica nesta matéria mostram que não se tratava de fé alguma. As pessoas simplesmente foram doutrinadas para responder a perguntas difíceis sobre as suas crenças invocando a fé. Como foi criada tal convicção? Pelo poder. As crianças eram doutrinadas por adultos, e os adultos tudo sabem... para os mais renitentes havia a ameaça das chamas e, para ajudar, sempre havia uns açoites. Se estes não chegassem haveria mais tarde a alguma forma de mordaça salazarista. A Igreja abençoava e usava o regime. O regime protegia e usava a Igreja. Liquidar o casamento entre Estado e Igreja é uma tarefa política que ainda não foi inteiramente resolvida. Mas, mesmo que o tivesse sido, o crime maior, ensinar as pessoas a pensar mal, a ter medo de pensar e a discutir desonestamente, custará mais a limpar.

Disse que a Igreja ensinou a pensar mal e sugeri que tinha ensinado a invocar a fé como truque para liquidar objecções sérias. Vejamos algumas consequências aberrantes das doutrinas que referi acima.

De acordo com esta doutrina, os pais deviam baptizar os filhos o mais depressa possível - não sabemos o que pode acontecer amanhã e seria monstruoso pôr a pequena criatura amada em risco de purgatório se morresse ainda com a culpa original... Alguns pais desleixaram-se um pouco neste aspecto mas talvez com razão - apesar do que diz o sacerdote, Deus é infinitamente bom e, por isso, não acreditam muito nessa necessária passagem pelo purgatório.

Baptizada a criança que fazer depois? Qual é o maior perigo que ameaça as crias? A morte em pecado e a consequente condenação eterna. É possível eliminar esse risco? Orações, educação religiosa, promessas e penitências podem ajudar mas não são garantias. Mas há uma maneira... E se a criança morresse já? O céu estava garantido - apesar de usar muitas linhas tortas, não há dúvida que Deus é justo e não pode fugir à sua própria justiça. Logo, não poderia condenar um inocente... se a criança morresse já, estava safa. Os pais, primeiro, recuarão de horror ante tão monstruosa ideia. São filhos de Deus, é certo, mas também são mamíferos e têm aquele sentimento egoísta e possessivo dos mamíferos, que os impedirá de ceder as suas crias mesmo a Deus. Impede? A capacidade para amar pode medir-se pelo sacrifício de que aquele que ama é capaz. E o que está em causa é a felicidade eterna e inalterável das crias junto de Deus. O amor arranca a os pais ao seu egoísmo. E matam os filhos. Foi a consequência da fé, da certeza garantida por Deus e do amor.

O crime dificilmente poderia ser maior aos olhos de Deus. Os pais sabem-no e sabem que serão condenados ao fogo eterno. Mas que podem fazer? Amor infinito, sacrifício infinito, castigo infinito... Mas pode Deus ser indiferente à dimensão de tal sacrifício? De quem, por amor, desafiou a seu egoísmo animal, desafiou todas as leis divinas e, por isso, se condenou sem remédio? É um sacrifício absoluto, maior que o de Cristo. Cristo, por ter assumido integralmente a sua condição humana, e, portanto, ter abdicado temporariamente da sabedoria divina, poderia até nem saber que a Sua ressurreição estava assegurada e que o sofrimento, como todo o sofrimento neste vale de lágrimas, é trânsito para a Verdadeira Vida. Mas, mesmo que tenha sido esse o caso, o seu sacrifício não implicou em ponto algum o abandono da esperança. Na cruz ainda se sentiu abandonado pelo Pai - mas nada obrigava a que se sentisse eternamente abandonado. Os pais infanticidas, porém, condenaram-se por amor, separaram-se eternamente e sem esperança de tudo o que mais amavam - a criança, Deus. Nááááá´... Deus não pode ser indiferente a tal demonstração de fé, de absoluta confiança na justiça divina. Portanto os pais infanticidas serão perdoados e viverão eternamente com Deus.

O argumento na sua simplicidade:

(1) A fé é uma certeza absoluta garantida apenas por Deus.
(2) A fé assegura a salvação eterna para os que morrem sem pecado.
(3) A fé assegura que o baptismo da criança limpa-a de todo o pecado.
(4) Logo, a criança que morra imediatamente após o baptismo está salva.
(5) Quem ama, fará o que for preciso para a salvação daquele que ama.
(6) Matar crianças recém-baptizadas garante a salvação eterna das crianças.
Logo, aquele que ama as crianças deve matar as crianças recém-baptizadas.
...
Ora, tu não aceitas esta loucura,
Logo, qual das premissas (1) a (6) rejeitas?

O argumento pode ser explorado de muitas maneiras e ter vários desenvolvimentos. Há uma razão para ele ser tão forte: de acordo com todas as versões populares do cristianismo, esta vida não tem sentido e valor em si mesma - tudo o que cá em baixo tem sentido e valor só o deve ter em função de Deus e da Vida Eterna. Resulta daqui que é facílimo apontar os absurdos que derivam de tal crença. Se a criança está baptizada e morrer está salva! Se o João confessou todos os pecados, penitenciou-se e foi assassinado, morreu, óptimo - safou-se... e assim por diante. Esta desvalorização da vida terrena leva ao seguinte: é bom que as pessoas que a aceitam não amem a valer, senão a contratação de assassinos para matar a pessoa amada seria uma prática corrente... e louvável..

Quando apresento este argumento aos meus amigos católicos é claro que fico a falar sozinho. Acham que isto só pode ser, claro, brincadeira de mau gosto. Ainda a posso aceitar esta recusa do debate se a pessoa estiver pura e simplesmente desagradada. Nesse caso não se trata de simples fuga á discussão de razões mas de uma questão de feitio - caso em que a discussão pode prosseguir se eu apresentar o argumento de forma menos sádica. Mas a regra é a simples fuga apavorada e bloqueio total da discussão.

Essa atitude é errada a muitos títulos.. É admitir que não há outras maneiras de tratar dos assuntos. Mas recusar razões para poder, cegamente, continuar a defender que a fé está ao abrigo da crítica tem consequências graves. Notícias de suicídios colectivos em nome da fé não são novidade. Se aceitamos que a fé, por ser fé, está ao abrigo do exame crítico, em nome de quê podemos criticar os tais suicídios colectivos? É fácil admitir que o meu argumento pode inspirar um padre louco e bem falante. Ele pode convencer um monte de pessoas, sobretudo se a catequese fez parte da educação, da necessidade do sacrifício dos filhos num ritual que será completado com o suicídio em massa dos pais infanticidas. As doutrinas que põem a fé ao abrigo de todo o exame crítico, contêm os germes da loucura e do crime. Não aceitar a existência deste risco é, quanto a mim, o maior crime que as igrejas continuam a cometer - e por esse o Papa ainda não pediu perdão ao mundo.

No entanto! Se as pessoas ousassem pensar um pouco em vez de reagir a partir do medo que lhes foi incutido, responderiam facilmente ao argumento do infanticídio. Se não estamos num debate público que, por exemplo, renda votos, e somos alvo de um bom MT, não temos de nos sentir entre a espada e a parede, como se tivéssemos de pensar assim: "Ou respondo já, imediatamente, ou perco e terei de abdicar da minha fé". Afinal há tempo para pensar estas coisas e, se a fé é grande, deve haver fé em que uma resposta há-de surgir. E a resposta é simples: basta admitir que a fé é tocada, sempre, por algum leve grau de dúvida, para que aquele argumento desabe. Todo o argumento depende da ideia de que a pessoa não tem qualquer espécie de reserva em relação aos conteúdos da sua fé. A premissa a rejeitar é esta: "A fé é uma certeza absoluta garantida apenas por Deus"

Poderia eu modificar o argumento para o tornar re-fortalecer? Não me parece. Suponham que digo algo como:

Alguns filósofos, matemáticos ou outras pessoas mais experientes, suspeitariam imediatamente de truque no caso da aposta referida neste parágrafo. Tal como x em x=2+3 é o nome do número 5, também o proponente da aposta podia ter escrito na mão: "o número que a pessoa acabou de dizer". E não podia perder a aposta... 'Tá bem, a fé é uma certeza ainda que com uma vaga e sumidinha sombra de dúvida. Mas, para os crentes a dúvida é uma possibilidade extraordinariamente remota.. É como dizerem-me: neste papel tenho um número entre 1 e 100 000 000 000 000 000. Vais dizer um número qualquer. Se não for o número que tenho na mão, podes pedir-me algumas toneladas de ouro, mais isto e aquilo. Se, por improbabilíssimo azar, disseres o número que tenho na mão ficas sem um dedo à minha escolha. A julgar pelo que as pessoas aceitam fazer na TV, para ganharem uns segundos de glória e algumas patacas, convenço-me que 99% dos portugueses aceitavam a aposta. E entre eles estão milhões de católicos. Como a fé é um certeza semelhante à de esta aposta, procuraria concluir que o infanticídio continua a justificar-se. Apesar da levíssima e quase inexistente dúvida, matar as crianças recém baptizadas ainda parece uma boa aposta.

É claro que esta conclusão falha. Para tornar o argumento do infanticídio credível não hesitei em falar de um amor infinito. Ora aquilo vale infinitamente, absolutamente, está ao abrigo de toda a aposta. Se a fé for uma certeza absoluta, matar criancinhas é plausível; se fé for tocada pela dúvida, por levíssima que seja, o meu argumento é inofensivo.

Mas, para o crente, é possível assumir que a fé é necessariamente tocada pela dúvida? É possível mas inconveniente e, nestes casos, a conveniência acaba por vencer. É possível: muitos crentes, sacerdotes ou não, são capazes mesmo de dizer que essa é a situação. Mas não é conveniente. Por uma simples razão: isso é uma quebra da autoridade que as Igrejas sempre acham que devem ter sobre a consciência dos seus fiéis. É difícil manter uma fidelidade sem reservas quando se admite que o papá também erra.

Por isso, não é de esperar que os pregadores comecem a acrescentar aos seus sermões: ... isto é o que a fé nos diz -- mas lembrem-se que a verdadeira fé contém a dúvida. E que a dúvida se combate pela oração mas também pelo exame e discussão franco e aberto das nossas crenças, mesmo com os nossos pobres irmãos que não têm a fé.

Júlio Sameiro
sameiro@crosswinds.net

Transcrito para este site por:

José Nogueira dos Reis

 

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Que Quer Dizer Tudo Isto?
Uma iniciação à filosofia, de Thomas Nagel
Tradução de Teresa Marques
Revisão Científica de Desidério Murcho
Gradiva, Novembro 1995, 92 pp.

 

Uma introdução elementar a 9 problemas filosóficos típicos, escrita num tom informal, claro e simples, mas rigoroso e preciso. O autor introduz tópicos de epistemologia e metafísica, filosofia da linguagem e da mente, ética e filosofia política, terminando com uma introdução a dois tópicos metafísicos gerais (o sentido da vida e o problema da morte). O Cap. 1 oferece ainda uma caracterização preliminar do género de problemas que são estudados pela filosofia.

Nagel defende que não é possível compreender os textos dos grandes filósofos sem que tenhamos percebido os problemas com que se debatem. Por isso, introduz directamente o leitor aos problemas da filosofia, nunca citando uma só vez um nome de um filósofo.

O título da obra refere-se à pergunta repetidamente formulada, sempre que se procura caracterizar um problema: que quer isso dizer? O leitor fica assim ciente da importância, central na filosofia, de procurar a formulação correcta dos problemas filosóficos, verificando a cada passo se estamos perante um problema genuíno ou não. As tentativas de solução dos problemas apresentados são cuidadosamente defendidas com argumentos claros. Geralmente, essas tentativas fracassam, pois o autor deseja mostrar por que razão as soluções mais óbvias falham.

Todos os problemas abordados em Que Quer Dizer Tudo Isto? fazem parte dos programas do ensino secundário, pelo que esta obra constitui um instrumento crucial neste domínio. Mas a acuidade com que os problemas são colocados, o cuidado posto na clareza da argumentação e a importância central dos temas tratados tornam esta obra numa leitura obrigatória para os alunos do ensino superior e para o público interessado em conhecer um pouco mais os problemas da filosofia.

Este pequeno livro é talvez a melhor primeira introdução à filosofia que se pode ler. Gostaria de tê-lo lido com 16 anos: ter-me-ia poupado muitas angústias e amarguras na minha relação com a filosofia e o seu ensino. Esta obra não nos ensina o que pensou Platão, nem Aristóteles, nem Descartes, nem Kant; mas ensina-nos o mais importante: ensina-nos a pensar sobre os problemas filosóficos. E sem essa competência específica, é inútil aprender o que disseram os grandes filósofos do passado.

Desidério Murcho


Transcrito para este site por:

José Nogueira dos Reis

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A Torre de Babel: distopia bíblica e utopia maçónica


Luís Manuel Mateus

Introdução

Guardo, da minha infância, dos tempos da catequese católica, a memória de alguns relatos terríveis, obviamente destinados a incutir, na criança que eu era, uma muito conveniente mentalidade «temente a Deus».

A par da narrativa do naufrágio do Titanic -- justificado, então, como resposta divina à pretensão humana de construir um navio inafundável -- o relato que mais me impressionava era, sem dúvida, o da Torre de Babel; duas histórias, aliás, para mim idênticas na dificuldade de entender o comportamento perverso de um deus que me era simultaneamente apresentado como «infinitamente bom».

Mas a questão não se confina ao âmbito teológico. Ao longo da História, a representação desse deus que castiga a audácia humana fundamentou uma constante de opressão e perseguição sangrenta perpetrada por «intérpretes da vontade divina» sobre protagonistas dos mais variados «atrevimentos heréticos».

Que as simples reflexões que aqui trago nos sirvam para lembrar esses homens e mulheres -- nossos irmãos e heróis -- que, pela ousadia do sonho ou da inteligência, «ofenderam a Deus».

O Mito -- tal e qual

A história da Torre de Babel é muito curiosa e, a vários títulos, interessante. Lembremo-la aqui :

Todos os homens na terra se serviam da mesma língua e das mesmas palavras. Ao caminharem para oriente, os homens descobriram uma planície na terra de Shinear(1) e ali habitaram.

Disseram: "Vamos! Façamos tijolos e cozamo-los no forno". Os tijolos serviram-lhes de pedra e o betume serviu-lhes de argamassa. Disseram: "Vamos ! Construamos para nós uma cidade e uma torre cujo cume atinja o céu! Tomemos para nós um nome e não nos dispersemos mais sobre a Terra".

Ora, o Senhor desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído. E o Senhor disse: "Ei-los que formam um só povo e uma só língua e é esta a primeira das suas obras! Agora, nada do que almejarem fazer lhes será inacessível! Vamos! Desçamos! E aí, confundamos a sua língua para que não mais se entendam entre si".

Dali, o Senhor dispersou-os sobre toda a face da Terra e eles pararam de construir a cidade. Assim, lhe foi dado o nome de Babel(2), pois foi ali que o Senhor confundiu a língua de todos os homens da terra, e foi dali que o Senhor os dispersou por sobre toda a face da Terra.

Génesis, 11:2-9

O Mito -- uma leitura

Em linguagem actualizada, a fábula da Torre de Babel poderia contar-se assim:

Era uma vez um povo antigo. Atingido um estádio de desenvolvimento económico e social que permitia a sua sedentarização efectiva e permanente -- domesticação de animais, desenvolvimento da agricultura, divisão e organização do trabalho --, esse povo fixa-se num território aprazível que encontra quando caminha para Oriente(3).

O local escolhido afigura-se-lhe tão paradisíaco(4), que lhe atribui o nome de «Porta do Céu»(5) e, reforçado na sua coesão e organização internas, esse povo resolve assumir, colectivamente(6), o ambicioso projecto de construir "uma cidade e uma torre cujo cume atinja o céu", empresa que representa uma clara vontade de se ultrapassar -- de, literalmente, se elevar(7) -- pela superação, em complexidade e estatura, das suas construções correntes.

É assim que a narrativa bíblica do episódio da Torre de Babel constitui um dos mais antigos e interessantes testemunhos escritos conhecidos de onde ressalta essa dimensão humana que, recorrentemente, como uma «constante histórica», sustenta a atitude que, mais tarde, se virá a designar como «humanista»(8) e que, essencialmente, consiste em o Homem se assumir em liberdade e autonomia, se permitir transcender-se pela concretização dos desafios que a si mesmo se coloca e ainda em considerar ser precisamente esse o caminho da sua valorização e dignificação enquanto Homem.

Mas a história da Torre de Babel não acaba aqui. Efectivamente, enquanto os homens daquele povo antigo estão empenhados na construção da sua Cidade e da sua Torre, Deus -- o Senhor -- está inquieto, ofendido com a ousadia inaudita do exercício de uma capacidade que, afinal, confirma aos homens e mulheres uma aptidão de liberdade e lhes legitima um poder criador idêntico ao seu.

Agastado com o desaforo daqueles homens, o Senhor constata "que formam um só povo e uma só língua" -- ou seja: que criaram coesão, organização e harmonia entre si -- e, porque desse modo "nada do que almejarem fazer lhes será inacessível!", decide agir, rápido e drástico, confundindo a sua língua "para que não mais se entendam entre si", se "dispersem sobre a Terra" e "parem de construir a cidade".

Punição mais terrível não seria fácil imaginar. E, segundo alguns, as muitas fracturas e desentendimentos que persistem em dividir a Humanidade constituiriam para nós, ainda hoje, a expiação da falta grave, da ousadia extrema dos nossos antepassados noaquitas.

O Mito -- outras leituras

Embora não seja exclusiva do Homem(9), a actividade da «construção» está-lhe associada de um modo muito particular e essencial: desde tempos muito recuados da sua História, o Homem afirma-se na Natureza como um animal construtor, como um ser criador que, por um lado, sistematicamente, modifica -- constrói -- o ambiente que o envolve para o adequar às suas necessidades e, por outro, permanentemente, a si mesmo se transforma -- se constrói -- na sua forma, individual e social, de ser e estar.

O relato bíblico da Torre de Babel esclarece o significado dos empreendimentos concretos de construção a que os homens se tinham abalançado, quando explica como aquela Cidade e aquela Torre resultavam de uma construção social e cultural, de um especial entendimento que eles tinham conseguido gerar entre si e do optimismo humanista que daí lhes advinha.

A violentíssima intervenção de Deus -- o Senhor -- sobre este quadro humanamente prometedor vem essencialmente levantar a questão dos limites autorizados da autonomia e da liberdade do Homem e é assim que podemos fazer a sua leitura segundo duas perspectivas:

  1. Numa aproximação sociológica da cultura, a intervenção divina relatada no episódio da Torre de Babel é uma representação mítica -- uma justificação exterior e superior ao Homem -- da institucionalização de uma fronteira entre um «permitido» e um «interdito», de uma demarcação de limites e barreiras que reconhecemos necessária para estabelecer o fundamento de qualquer Cultura.(10)
  2. Numa aproximação historiográfica, a ingerência autoritária de Deus no processo de edificação da Cidade e da Torre de Babel é um dos mitos fundadores das concepções providencialistas do Mundo que marcaram o período medieval e contra as quais se vieram veementemente afirmar as ideologias progressistas -- humanistas -- do renascimento e do modernismo.

É esta segunda leitura que aqui me interessa relevar, já que ela constitui pano de fundo para um conjunto de acontecimentos que marcaram o processo de formulação de um discurso ideológico moderno sobre o Homem e o Mundo.

Efectivamente, no saldo das leituras da narrativa da Torre de Babel, ficam-nos duas grandes questões -- uma de ordem ontológica, outra de ordem teológica -- que podemos formular assim: até quanto é permitido ao Homem construir e construir-se? E até onde pode Deus interferir na sua vida?

Sobre Deus e o seu olhar para o Homem, nada sei(11); interessa-me, contudo, perceber os modos como, ao longo da História, se formularam e responderam aquelas duas questões fundamentais, já que são esses diferentes discursos ideológicos que, na sua tradução prática, produziram -- e ainda produzem -- factos, social e historicamente pertinentes.

Para avançar, abstenho-me de recordar aqui o modo como essas questões foram colocadas e respondidas no quadro das Civilizações Clássicas -- os panteões de deuses e as mitologias vigentes no mundo grego, helenístico e romano do período clássico pouco relevam na reflexão que aqui pretendo trazer -- e passo de imediato à seguinte constatação óbvia, directamente relacionada com o mito em análise: é o Deus bíblico judaico-cristão que vem impedir e desfazer a obra dos homens e mulheres que pretendiam construir a Cidade e a Torre de Babel.

Assim, torna-se oportuno e conveniente recordar os seguintes factos históricos: com raiz no monoteísmo judaico e nas prédicas de Jesus, durante o último período do Império Romano, o Cristianismo difundiu-se rapidamente pela bacia do Mediterrâneo e, se inicialmente constituiu suporte de uma ideologia de resistência ao jugo imperial, a partir de Constantino I (270-337) e do édito de Milão (313), na formulação e organização que assumiu no concílio de Niceia (325) como Igreja Católica -- ou seja: como «congregação universal» -- acabou por se instalar e institucionalizar em todo o vasto mundo romano.

A par do culto ao deus único e todo-poderoso herdado da Bíblia judaica, a religião católica veio estabelecer na Europa a preeminência de uma Lei Divina revelada, fundadora de uma ética de obediência assente nas noções de salvação e pecado; e, paralelamente, no frágil quadro político resultante do colapso do Império Romano face aos povos invasores bárbaros, veio também institucionalizar a soberania de um poder absoluto, de emanação sobrenatural, que se constituía como única fonte legitimadora do poder temporal.

Nesse mundo europeu gerido por intransponíveis relações pessoais de vassalagem feudal, a Igreja Católica Romana constituía um Estado acima dos Estados(12) e assim, durante mais de um milénio, conseguiu espartilhar o pensamento ocidental, impondo-lhe uma visão teocentrica e providencial do universo e da vida e restringindo o campo de acção da Filosofia à defesa e promoção da Fé Cristã, entendida como fonte única do conhecimento.

Efectivamente, foi necessário chegar ao século XV para ver ressurgir plenamente(13) uma outra forma de olhar, perceber e projectar o Homem e o humano, num discurso que, retomando formulações filosóficas clássicas, integrando o pensamento e o conhecimento árabe e hebraico e opondo-se ao teocentrismo providencial e fechado da escolástica medieval, veio afirmar, numa postura (moderna) de rompimento e inovação, um antropocentrismo marcadamente progressista e optimista.

Durante o longo e obscuro período medieval, o mito da Torre de Babel foi adoptado no seu sentido mais literal e imediato, enquanto ilustração da autoridade ilimitada de Deus e da sua vontade que tolhe a liberdade do Homem e, para o confirmar, basta lembrar a doutrina de Santo Agostinho (354-430) e o seu exemplo de contraste entre duas cidades simbólicas: de um lado estaria a Cidade de Deus, onde se viveria na obediência e no amor a Deus, do outro estaria a Cidade do Mundo, onde se desprezaria a Deus e se viveria sob domínio das paixões materiais e do egoísmo; a primeira seria Jerusalém, a segunda seria, evidentemente, a cidade do mito aqui em apreço, a Babilónia!(14)

Mas esta visão tão fortemente condicionante e limitadora das perspectivas do Homem e do seu papel no Mundo não era pacífica e a sua manutenção e perpetuação como doutrina oficial da Europa medieval só foi possível pelo diligenciar contínuo de um clero autoritário que, quantas vezes a ferro e fogo, fez prevalecer a perspectiva exclusiva e totalitária da Igreja Católica contra toda e qualquer manifestação de heresia(15), contra todo e qualquer arrojo de racionalidade emancipada.

Contudo, nos subterrâneos -- e, porventura, literalmente, nos alicerces -- dessa sociedade de intransigência instituída que, com mão pesada, constrangia o corpo e o gesto e amordaçava a palavra, terá sempre sobrevivido o grande desígnio humano da liberdade e do progresso, suportados na sua indisciplinável aptidão ao livre pensamento; e, aparentemente, um dos «espaços» propícios à sua conservação e sustentação terá sido, irónica, precisamente, mas não por casualidade, o círculo social e profissional dos mestres construtores, os arquitectos das espantosas igrejas e catedrais da época -- edifícios que, pela evidente ousadia arquitectónica, constituiriam as Torres de Babel da Europa medieval.

A Maçonaria -- Arte da Construção

Os mestres construtores medievais -- também designados por pedreiros livres ou franco-maçons (16) -- a quem era cometido desenhar e orientar as obras edificadas mais notáveis desse tempo, eram os principais, se não os únicos, detentores de vastíssimos conhecimentos teóricos e práticos -- cobrindo a Geometria, a Estabilidade (Física e Matemática aplicadas), a Estética, a Simbólica e as Tecnologias altamente complexas e especializadas (alvenaria, carpintaria, etc.) -- requeridos pela Arquitectura ou «Arte Real»; e acautelavam esse Saber(17) como uma ciência secreta, só transmissível por via iniciática, já que nele residia a única garantia sólida do estatuto especial de liberdade e dignidade de que gozavam na sociedade.

Organizados em corporações de ofício -- confrarias, fraternidades, companhias, guildas, etc. --, à maneira dos demais artesãos, e, simultaneamente, em lojas, de carácter mais local, esses maçons operativos(18) constituíam uma elite intelectual restrita e organizada; e, não tendo seguramente sido os únicos mentores da revolução de mentalidade que se começou a operar na Europa dos séculos XV e XVI, certo é que para ela terão contribuído decisivamente, quer por deterem uma larga cultura de ofício alicerçada na experiência e na racionalidade, quer por constituírem uma agremiação social e profissional com grande prestígio entre o estrato intelectual da classe burguesa entretanto formada, quer ainda devido à sólida estruturação e coesão internas que também conservavam.

A Maçonaria, tal como a conhecemos hoje, enquanto organização filosófica e especulativa nasceu precisamente dessa Maçonaria operativa medieval, num processo gradual de transformação das suas lojas em academias de livre pensamento acessíveis a qualquer indivíduo(19), independentemente da sua origem social, na condição única de ser homem "livre e de bons costumes."(20)

Os membros dessas novas lojas de configuração socialmente aberta e abrangente continuaram -- e continuam -- a arrogar-se o estatuto dos antigos pedreiros-livres construtores; contudo, esses novos maçons passaram a assumi-lo simbolicamente e numa dupla condição: enquanto obreiros de si próprios, num caminho de permanente procura de aperfeiçoamento pessoal;(21) e enquanto arquitectos da interminável construção da Cidade, da Catedral de Harmonia Humana que almejam para a Humanidade -- uma sociedade futura de contornos auspiciosos porque, regida pelos grandes princípios do Entendimento e da Tolerância, permitirá que todos os homens aufiram os benefício de uma vida em Liberdade, em Igualdade e em Fraternidade.

É deste modo que reencontramos, na Maçonaria moderna, as ideias em que assenta o mito da Torre de Babel: o Homem percebido como o grande «construtor» de si próprio, da sociedade e do Mundo; O Homem que aspira à dignidade de poder elevar ou desenvolver, sem limites, a sua Cidade e a sua Torre -- a sua Obra.

A Maçonaria -- propósito de reconstrução da Cidade e da Torre de Babel

Mas, se a Bíblia da Igreja Católica utiliza aquele relato para propor uma interpretação distópica(22) do Mundo e proclamar que o Homem, condenado na Terra à dispersão e à discórdia, só pode encontrar a Paz e a Harmonia em Deus,(23) a Maçonaria, pelo contrário, assumindo no desaire o desafio, pode fazer do mito da Torre de Babel precisamente uma alegoria para a sua empresa -- ou demanda -- humanista, optimista e assumidamente utópica(24) e preconizar que, pela razão, pelo esforço e pela união fraternal de indivíduos tolerantes perante as respectivas diferenças, é possível edificar na Terra um Homem mais digno e uma Sociedade mais justa e harmoniosa.

Efectivamente, livres-pensadores emancipados de uma tutela metafísica autoritária,(25) os maçons sustentam a perspectiva de um contínuo Progresso para o Homem e para o Mundo e, desse modo, assumem-se como herdeiros e autores de um projecto em permanente estádio de traçado, como animadores e transmissores de uma perspectiva optimista do futuro e propõem-se à Sociedade como parceiros, firmes e persistentes, de todos os demais seres humanos bons que pretendam combater a ignorância, a tirania e a injustiça e que aceitem trabalhar, sem preconceitos nem dogmas, na elaboração dos mais diversificados recursos, na criação das soluções mais adequadas para enfrentar os grandes desafios que se colocam à Humanidade.

Contudo -- contrariamente ao que consta -- a Instituição Maçónica, não é uma organização de tipo partidário, não possui um projecto de sociedade pré-definido que pretenda ver implantado e desenvolvido segundo uma qualquer estratégia pré-estabelecida(26) e, por esse facto, também não tem qualquer desígnio de poder que tenha em vista a viabilização de um qualquer objectivo político preciso e concreto: na verdade, é cada maçon, individualmente, a seu modo, livremente e sempre de acordo com a sua consciência, que se pode (e deve) empenhar nas causas em que acredita, debatendo-se no seu íntimo entre estar ao lado do poder ou do contra-poder, naturalmente sabedor da desigual responsabilidade que cada um desses campos lhe acarreta.

Desse modo, a Maçonaria disponibiliza aos seus membros, num quadro de absoluta liberdade de consciência e opinião, uma via que lhes proporciona um aperfeiçoamento pessoal individual e que lhes faculta assumirem-se em cidadania; ou seja: na disponibilidade para uma forte intervenção, para uma participação social activa, para um contributo franco na procura de soluções para os problemas da vida colectiva, sempre com base nas posturas e valores que libertam, dignificam e fazem progredir o Homem.

O grande propósito, o grande trabalho, da Maçonaria moderna é, assim, o de promover, em todo o Mundo, sem descanso nem desalento perante os inevitáveis desaires, pela via da sabedoria e do amor, a aproximação e o entendimento entre todos os Homens e incitá-los a que, conjuntamente, porfiem nessa tarefa imensa de reconstrução simbólica da Cidade e da Torre de Babel, ou seja: no progresso da humanidade. No relato bíblico, Deus exclama: "Ei-los que formam um só povo e uma só língua! [] Agora, nada do que almejarem fazer lhes será inacessível!" Os maçons reconhecem-se nessa afirmação.

Luís Manuel Mateus

Notas

  1. A terra de Babilónia.
  2. «Babel» -- palavra caldaica formada por «Bab» (porta) + «El» (alto), tal como o nome da cidade de Babilónia. Significaria algo como «Porta do Céu» ou «Porta das Alturas» (informação de Moisés Espírito-Santo).
  3. A referência ao nascente solar poderá nem ser inteiramente inocente, se atendermos a que, no seu sentido simbólico óbvio, o «Oriente» está ligado às ideias de início, nascimento, começo, abertura, etc., bem como de renascimento, renovação, recomeço, etc.
  4. Para utilizar um termo igualmente referido a um modelo bíblico.
  5. Cf. nota 2.
  6. Ao contrário do que sucede noutros textos bíblicos onde, em regra, um «notável» assume o protagonismo da história contada (vejam-se Noé, Abraão, Salomão, etc.), no episódio da Torre da Babel a acção relatada é assumido por um colectivo: um povo.
  7. A ideia de construir «em altura» manteve-se até hoje como um dos paradigmas simbólicos da elevação e do progresso do Homem; veja-se a Arquitectura das pirâmides e das catedrais, lembre-se a corrida ao arranha-céus mais alto do mundo ou atente-se nas torres que, fora de contextos adequados, como um sinal de modernidade, marcam a nossa paisagem do interior do país.
  8. A designação «Humanismo» só foi criada, tardiamente, no início da segunda metade do século XVIII (c. 1760), em pleno iluminismo, portanto.
  9. Muitos outros animais, dos mais simples aos mais complexos, se podem também considerar «seres construtores», já que modificam, à medida das respectivas necessidades, o ambiente em que vivem; contudo, nenhum o faz com a profundidade e extensão e, sobretudo, com a liberdade e a criatividade evidenciadas pelo Homem.
  10. Outros mitos bíblicos têm função idêntica e o mais relevante será porventura a história de Adão e Eva no Jardim do Éden, também eles proibidos por Deus de provar da árvore do conhecimento do Bem e do Mal.
  11. Agnóstico e ateísta assumido, desconheço a divindade e, consequentemente, também não reconheço qualquer teopsia.
  12. Em certa medida, o Papa, simultaneamente chefe da Igreja Católica e, até aos acordos de Latrão (1927), senhor dos Estados Pontifícios da Península Italiana, assumia-se como que o herdeiro simbólico do Imperador de Roma, avocando -- nem sempre de forma facilmente aceite, diga-se, já que outros soberanos aspiraram àquele estatuto -- a função de «suserano dos suseranos» dessa Europa de inter-relações feudais.
  13. O processo inicia-se, ainda timidamente, no século XII, com Abelardo e outros pensadores neoplatónicos que, divergentes da doutrina oficial da Igreja, iniciaram o processo de revalorização da racionalidade e da dialéctica no pensamento filosófico.
  14. Ou Babel, cf. nota 2.
  15. «Heresia» -- do grego «haíresis», com significado de escolha, opinião.
  16. As designações «pedreiro livre» e «franco-maçon» decorrem do estatuto particular de liberdade e dignidade sociais que os mestres construtores detinham no seio do mundo medieval. O vocábulo «franco» aparece aí com o significado de «livre», tal como permanece, por exemplo, na expressão «feira franca».
  17. O Saber dos franco-maçons operativos seria muito largo e abrangente, envolvendo conhecimentos colhidos, quer na Ciência Clássica, grega e romana (Pitágoras, Euclides, Vitrúvio, etc.), quer na Ciência e Tradição Oriental, caldaica, hebraica e árabe (Álgebra, Cabala, etc.)
  18. Assim designados para diferenciar os antigos «mestres construtores» dos novos «maçons especulativos» da Maçonaria moderna.
  19. Lembro aqui o artigo 1.° das "Constituições de Anderson"  -- "The Constitutions of the Free-Masons", Londres, 1723; a compilação das «regras de ofício» que constitui o texto fundador da Maçonaria moderna -- onde se esclarece que a Franco-Maçonaria deve constituir "o Centro de União, e o meio de promover uma verdadeira Amizade entre Pessoas que teriam sido forçadas a permanecer a uma perpétua Distância".
  20. Expressão utilizada no ritual de iniciação -- ou de recepção -- de um novo «obreiro» numa loja maçónica.
  21. Como «pedra bruta» a ser aparelhada e transformada em «pedra cúbica».
  22. «Distopia» -- do grego «dýs» (mal) + «tópos» (lugar) -- ou seja: «lugar do mal», «lugar mau», «lugar de miséria».
  23. Embora a Igreja Católica tenha actualmente um discurso mais moderado, verdade também é que, recorrentemente, nos continua a apregoar a desgraça; veja-se, a propósito (por exemplo), a última Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa: "Crise de Sociedade -- Crise de Civilização" (27/04/2001).
  24. «Utopia» -- do grego «oú» (não) + «tópos» (lugar) -- ou seja: «lugar inexistente», «lugar imaginário», «lugar ideal», no sentido de projecção positiva que lhe deu o humanista Thomas Morus, na sua obra com o mesmo nome.
  25. O «Grande Arquitecto do Universo» -- representação antropomórfica do princípio da "ordem sobre o caos" -- é aceite pela Maçonaria, mas constitui-se como uma «referência aberta» que não obriga -- nem impede -- os maçons à sua identificação com qualquer «deus revelado».
  26. Sem verdades absolutas, sem ditames ideológicos acabados nem receitas feitas para a organização da Sociedade, é evidente que a Maçonaria também não reconhece «textos sagrados» indiscutíveis; contudo, existem documentos que hoje se consideram marcos importantes no sentido do progresso da Humanidade: a "Declaração Universal dos Direitos do Homem" -- o código jurídico internacional que enforma o exercício da cidadania -- é sem dúvida o mais importante e seria desejável vê-la integral e universalmente aplicada.

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José Nogueira dos Reis

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