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História de Santa Eugénia
História de Santa Eugénia/Amieiro
Esforço para vos contar. Santa Eugénia
Continuação

jnreis_santaeugenia.jpg(Click na foto).

História de Santa Eugénia
 

Babel e Sião
 
Sôbolos rios que vão 
Por Babilônia, me achei, 
Onde sentado chorei 
As lembranças de Sião 
E quanto nela passei. 

Ali, o rio corrente 
De meus olhos foi manado; 
E, tudo bem comparado, 
Babilônia ao mal presente, 
Sião ao tempo passado. 

Ali, lembranças contentes 
Na alma se representaram; 
E minhas cousas ausentes 
Se fizeram tão presentes 
Como se nunca passaram. 

Ali, depois de acordado, 
Co rosto banhado em água, 
Deste sonho imaginado, 
Vi que todo o bem passado 
Não é gosto, mas é mágoa. 

E vi que todos os danos 
Se causavam das mudanças 
e as mudanças dos anos; 
Onde vi quantos enganos 
Faz o tempo às esperanças. 

Ali vi o maior bem 
Quão pouco espaço que dura; 
O mal que depressa vem, 
E quão triste estado tem  
Quem se fia da ventura. 

Vi aquilo que mais vale, 
Que então se entende milhor, 
Quando mais perdido for; 
Vi ao bem suceder mal 
E, ao mal, muito pior. 

E vi com muito trabalho 
Comprar arrependimento; 
Vi nenhum contentamento, 
E vejo-me a mim, que espalho 
Tristes palavras ao vento. 

Bem são rios estas águas 
Com que banho este papel; 
Bem parece ser cruel 
Variedade de mágoas 
E confusão de Babel. 

Como homem que, por exemplo, 
Dos transes em que se achou, 
Despois que a guerra deixou, 
Pelas paredes do templo 
Suas armas pendurou: 

Assim, depois que assentei 
Que tudo o tempo gastava, 
Da tristeza que tomei, 
Nos salgueiros pendurei 
Os órgãos com que cantava. 

Aquele instrumento ledo 
Deixei da vida passada, 
Dizendo: Música amada, 
Deixo-vos neste arvoredo, 
À memória consagrada. 

Frauta minha que, tangendo, 
Os montes fazíeis vir 
Pra onde estáveis correndo, 
E as águas, que iam descendo, 
Tornavam logo a subir, 

Jamais vos não ouvirão 
Os tigres, que se amansavam; 
E as ovelhas que pastavam, 
Das ervas se fartarão 
Que por vos ouvir deixavam. 

Já não fareis docemente 
Em rosa tornar abrolhos 
Na ribeira florescente; 
Nem poreis freio à corrente, 
E mais se for dos meus olhos. 

Não movereis a espessura, 
Nem podereis já trazer 
Atrás de vós a fonte pura, 
Pois não pudestes mover 
Desconcertos da ventura. 

Ficareis oferecida 
À Fama, que sempre vela, 
Frauta de mim tão querida; 
Porque, mudando-se a vida, 
Se mudam os gostos dela. 

Acha a tenra mocidade 
Prazeres acomodados, 
E logo a maior idade 
Já sente por pouquidade 
Aqueles gostos passados. 

Um gosto que hoje se alcança, 
Amanhã já o não vejo: 
Assim nos traz a mudança 
De esperança em esperança 
E de desejo em desejo. 

Mas, em vida tão escassa, 
Que esperança será forte? 
Fraqueza de humana sorte, 
Que quanto da vida passa 
Está recitando a morte! 

Mas deixar nesta espessura 
O canto da mocidade! 
Não cuide a gente futura 
Que será obra da idade 
O que é força da ventura. 

Que idade, tempo, o espanto 
De ver quão ligeiro passe, 
Nunca em mim puderam tanto, 
Que, posto que deixe o canto,  
A causa dele deixasse. 

Mas em tristezas e nojos, 
Em gosto e contentamento, 
Por sol, por neve, por vento, 
Tendré presente á los ojos  
Por quien muero tan contento 
 

Órgãos e frauta deixava, 
Despojo meu tão querido, 
No salgueiro que ali estava, 
Que pera troféu ficava 
De quem me tinha vencido. 

Mas lembranças da afeição 
Que ali cativo me tinha, 
Me perguntaram então: 
Que era da música minha 
Que eu cantava em Sião? 
Que foi daquele cantar 
Das gentes tão celebrado? 
Porque o deixava de usar? 
Pois sempre ajuda a passar 
Qualquer trabalho passado. 

Canta o caminhante ledo 
No caminho trabalhoso, 
Por entre o espesso arvoredo; 
E de noite o temeroso, 
Cantando, refreia o medo. 

Canta o preso docemente, 
Os duros grilhões tocando; 
Canta o segador contente, 
E o trabalhador, cantando, 
O trabalho menos sente. 

Eu, que estas cousas senti 
Na alma, de mágoas tão cheia, 
Como dirá, respondi, 
Quem alheio está de si 
Doce canto em terra alheia? 

Como poderá cantar 
Quem em choro banha o peito? 
Porque, se quem trabalhar 
Canta por menos cansar, 
Eu só descansos enjeito. 

Que não parece razão 
Nem parece cousa idônea, 
Por abrandar a paixão, 
Que cantasse em Babilônia 
As cantigas de Sião. 
 

Que, quando a muita graveza 
De saudade quebrante 
Esta vital fortaleza, 
Antes moura de tristeza  
Que, por abrandá-la, cante. 

Que, se o fino pensamento 
Só na tristeza consiste, 
Não tenho medo ao tormento: 
Que morrer de puro triste, 
Que maior contentamento? 

Nem na frauta cantarei 
O que passo e passei já, 
Nem menos o escreverei; 
Porque a pena cansará 
E eu não descansarei. 

Que, se a vida tão pequena 
Se acrescenta em terra estranha, 
E se Amor assim o ordena, 
Razão é que canse a pena 
De escrever pena tamanha. 

Porém se, pera assentar 
O que sente o coração, 
A pena já me cansar, 
Não canse pera voar 
A memória em Sião. 

Terra bem-aventurada, 
Se, por algum movimento, 
Da alma me fores mudada, 
Minha pena seja dada 
A perpétuo esquecimento. 

A pena deste desterro, 
Que eu mais desejo esculpida 
Em pedra ou em duro ferro, 
Essa nunca seja ouvida, 
Em castigo do meu erro. 

E se eu cantar quiser, 
Em Babilônia sujeito, 
Hierusalém, sem te ver, 
A voz, quando a mover, 
Se me congele no peito. 

A minha língua se apegue 
Às fauces, pois te perdi, 
Se, enquanto viver assi, 
Houver tempo em que te negue 
Ou que me esqueça de ti! 

Mas, ó tu, terra de Glória, 
Se eu nunca vi tua essência, 
Como me lembras na ausência? 
Não me lembras na memória, 
Senão na reminiscência. 

Que a alma é tábua rasa 
Que com a escrita doutrina 
Celeste tanto imagina, 
Que voa da própria casa 
E sobe à Pátria divina. 

Não é logo a saudade 
Das terras onde nasceu 
A carne, mas é do Céu, 
Daquela santa Cidade 
De onde esta alma descendeu. 

E aquela humana figura, 
Que cá me pôde alterar, 
Não é quem se há-de buscar: 
É o raio da Fermosura 
Que só se deve de amar. 

Que os olhos e a luz que ateia 
O fogo que cá sujeita, 
Não do sol, mas da candeia  
É sombra daquela idéia 
Que em Deus está mais perfeita. 

E os que cá me cativaram 
São poderosos afeitos 
Que os corações têm sujeitos; 
Sofistas que me ensinaram 
Maus caminhos por direitos. 

Destes o mando tirano 
Me obriga, com desatino, 
A cantar, ao som do dano, 
Cantares de amor profano 
Por versos de amor divino. 

Mas eu, lustrado co santo 
Raio, na terra de dor, 
De confusão e de espanto, 
Como hei-de cantar o canto 
Que só se deve ao Senhor? 

Tanto pode o benefício 
Da Graça, que dá saúde, 
Que ordena que a vida mude: 
E o que eu tomei por vício 
Me faz grau pera a virtude. 

E faz que este natural 
Amor, que tanto se preza, 
Suba da sombra ao real, 
Da particular beleza 
Pera a Beleza geral. 

Fique logo pendurada 
A frauta com que tangi, 
Ó Hierusalém sagrada, 
E tome a lira dourada 
Pera só cantar de ti; 

Não cativo e ferrolhado 
Na Babilônia infernal, 
Mas dos vícios desatado 
E cá desta a ti levado, 
Pátria minha natural. 

E se eu mais der a cerviz 
A mundanos acidentes, 
Duros, tiranos e urgentes, 
Risque-se quanto já fiz 
Do grão livro dos viventes. 

E, tomando já na mão 
A lira santa e capaz 
Doutra mais alta invenção, 
Cale-se esta confusão, 
Cante-se a visão da paz! 

Ouça-me o pastor e o rei, 
Retumbe este acento santo, 
Mova-se no mudo espanto; 
Que do que já mal cantei 
A palinódia já canto. 

A vós só me quero ir, 
Senhor e grão Capitão 
Da alta torre de Sião, 
À qual não posso subir, 
Se me vós não dais a mão. 

No grão dia singular 
Que na lira o douto som 
Hierusalém celebrar, 
Lembrai-vos de castigas 
Os ruins filhos de Edom. 

Aqueles que tintos vão 
No pobre sangue inocente, 
Soberbos co poder vão, 
Arrasai-os igualmente, 
Conheçam que humanos são. 

E aquele poder tão duro 
Dos afeitos com que venho, 
Que incendem a alma e engenho; 
Que já me entraram o muro 
Do livre alvídrio que tenho; 

Estes, que tão furiosos 
Gritando vêm a escalar-me, 
Maus espíritos danosos,  
Que querem como forçosos 
Do alicerce derrubar-me, 

Derrubai-os, fiquem sós, 
De forças fracos, imbeles; 
Porque não podemos nós 
Nem com eles ir a Vós, 
Nem sem Vós tirar-nos deles. 

Não basta minha fraqueza 
Pera me dar defensão, 
Se Vós, santo Capitão, 
Nesta minha fortaleza 
Não puserdes guarnição. 

E tu, ó carne que encantas, 
Filha de Babel tão feia, 
Toda de misérias cheia, 
Que mil vezes te levantas 
Contra quem te senhoreia, 

Beato só pode ser 
Quem com a ajuda celeste 
Contra ti prevalecer, 
E te vier a fazer 
O mal que lhe tu fizeste; 

Quem com disciplina crua 
Se fere mais que uma vez, 
Cuja alma, de vícios nua, 
Faz nódoas na carne sua, 
Que já a carne na alma fez 

E beato quem tomar  
Seus pensamentos recentes 
E em nascendo os afogar, 
Por não virem a parar 
Em vícios graves e urgentes; 

Quem com eles logo der 
Na pedra do furor santo 
E, batendo, os desfizer 
Na Pedra, que veio a ser 
Enfim cabeça do Canto; 

Quem logo, quando imagina 
Nos vícios da carne má, 
Os pensamentos declina 
Àquela carne divina 
Que na Cruz esteve já; 

Quem do vil contentamento 
Cá deste mundo visível, 
Quanto ao homem for possível, 
Passar logo o entendimento 
Pera o mundo inteligível, 

Ali achará alegria 
Em tudo perfeita e cheia 
De tão suave harmonia, 
Que nem, por pouca, escasseia, 
Nem, por sobeja, enfastia. 

Ali verá tão profundo 
Mistério na suma Alteza, 
Que, vencida a Natureza, 
Os mores faustos do Mundo 
Julgue por maior baixeza. 

Ó tu, divino aposento, 
Minha Pátria singular, 
Se só com te imaginar 
Tanto sobe o entendimento, 
Que fará, se em ti se achar? 

Ditoso de quem se partir 
Pera ti, terra excelente, 
Tão justo e tão penitente, 
Que, despois de a ti subir, 
Lá descanse eternamente! 
 
 

 Leia o Salmo (136) que inspirou o poema 

 
 
 

 


 JJoseNogueiraReis@sapo.pt