História Concisa da Filosofia Ocidental, de Anthony
Kenny
As ciências teóricas de
Aristóteles Anthony Kenny
Ciência e explicação
Aristóteles contribuiu para o desenvolvimento de muitas ciências, mas, em retrospectiva,
percebe-se que o valor desse contributo foi bastante desigual. A sua química e a sua física são muito menos impressionantes
do que as suas investigações no domínio das ciências da vida. Em parte porque não possuía relógios precisos nem qualquer tipo
de termómetro, Aristóteles não tinha consciência da importância da medição da velocidade e da temperatura. Ao passo que os
seus escritos zoológicos continuavam a ser considerados impressionantes pelo próprio Darwin, a sua física estava já ultrapassada
no século vi d. C.
Em obras como Da Geração e Corrupção e Do Céu, Aristóteles legou aos seus sucessores
uma imagem do mundo que incluía muitos traços herdados dos seus predecessores pré-socráticos. Adoptou os quatro elementos
de Empédocles: terra, água, ar e fogo, caracterizado cada um deles por um único par de qualidades primárias, calor, frio,
humidade e secura. Cada elemento tinha o seu lugar natural no cosmos ordenado, em direcção ao qual tinha tendência para ir
por meio de um movimento característico; assim, os sólidos terrestres caíam, enquanto o fogo se erguia cada vez mais alto.
Cada um desses movimentos era natural ao seu elemento; existiam outros, mas eram «violentos». (Mantemos hoje um vestígio desta
distinção aristotélica quando contrastamos a «morte natural» com a «morte violenta».) A Terra ocupava o centro do universo:
em seu torno, uma sucessão de esferas cristalinas concêntricas sustentavam a Lua, o Sol e os planetas nas suas viagens ao
longo dos céus. Mais distante, uma outra esfera sustentava as estrelas fixas. Os corpos celestes não continham os quatro elementos
terrestres; eram antes constituídos por um quinto elemento, ou quintessência. Além de corpos, possuíam almas: intelectos vivos
divinos que guiavam as suas viagens ao longo do céu. Estes intelectos eram responsáveis pelo movimento, estando eles próprios
em movimento, e por detrás deles, afirmava Aristóteles, deveria existir uma fonte de movimento, estando ela própria, no entanto,
imóvel. Era a divindade última e imutável que punha em movimento todos os outros seres «em resultado do amor» o mesmo
amor que, nas últimas palavras do Paraíso de Dante, movia o Sol e as primeiras estrelas.
Mesmo o melhor dos estudos científicos de Aristóteles possui hoje um interesse
meramente histórico; em vez de registar as suas teorias em pormenor, passarei a descrever a noção de ciência que sustenta
todas as suas investigações nos diversos domínios. A concepção aristotélica de ciência pode ser resumida se dissermos que
era empírica, explicativa e teleológica.
A ciência começa pela observação. No decurso das nossas vidas apercebemo-nos das
coisas com os nossos sentidos, recordamo-las, construímos um corpo de experiências. Os nossos conceitos são retirados da nossa
experiência; na ciência, a observação tem primazia sobre a teoria. Embora, no seu estado de maturidade, se possa fixar e transmitir
a ciência por meio da forma axiomática descrita nos Analíticos Posteriores, torna-se evidente, pelos trabalhos pormenorizados
de Aristóteles, que a ordem da descoberta é diferente da ordem da exposição.
Se a ciência começa com a percepção sensorial, termina com o conhecimento intelectual,
que Aristóteles vê como possuindo um carácter especial de necessidade. As verdades necessárias são como as verdades imutáveis
da aritmética: dois mais dois são quatro, sempre assim foi e sempre assim será. Opõem-se-lhes as verdades contingentes, tais
como a verdade de os gregos terem vencido uma grande batalha naval em Salamina; algo que poderia ter acontecido de outro modo.
Parece estranho afirmar, como Aristóteles, que aquilo que é conhecido tem de ser necessário: não será que podemos ter também
conhecimento de factos contingentes da experiência, tais como o de Sócrates ter bebido a cicuta? Houve quem julgasse que Aristóteles
estava a argumentar, falaciosamente, partindo da verdade
Necessariamente, se p é conhecida, p é verdadeira.
para
Se p é conhecida, p é necessariamente verdadeira.
o que não é de modo algum a mesma coisa. (É uma verdade necessária que se eu sei
que há uma mosca na minha sopa, há uma mosca na minha sopa. Mas, mesmo que eu saiba que há uma mosca na minha sopa, não é
necessariamente verdade que haja uma mosca na minha sopa: posso tirá-la de lá.) Mas talvez Aristóteles estivesse a definir
a palavra grega para «conhecimento» de modo a restringir-se ao conhecimento científico. É uma hipótese muito mais plausível,
especialmente se levarmos em linha de conta que, para Aristóteles, as verdades necessárias não se restringem às verdades da
lógica e da matemática, mas incluem todas as proposições universalmente verdadeiras, ou mesmo «verdadeiras na sua maior parte».
Mas a consequência que seria certamente aceite por Aristóteles de que a história não pode ser uma ciência, já
que lida com acontecimentos individuais, mantém-se.
A ciência é, pois, empírica; é também explicativa, no sentido em que é uma procura
de causas. No léxico filosófico incluído na sua Metafísica, Aristóteles distingue quatro tipos de causas ou explicações. Em
primeiro lugar, afirma, há aquilo de que as coisas são feitas, e a partir da qual são feitas, tal como o bronze de uma estátua
ou as letras de uma sílaba. A isto chama causa material. Depois, há a forma e o padrão de uma coisa, que podem ser expressos
na definição da mesma; Aristóteles fornece-nos um exemplo: o comprimento proporcional de duas cordas de uma lira é a causa
de uma ser a oitava da outra. O terceiro tipo de causa é a origem de uma mudança ou estado de repouso em qualquer coisa: Aristóteles
dá como exemplos uma pessoa que toma uma decisão, um pai que gera uma criança, e em geral todos os que fazem ou alteram uma
coisa. O quarto e último tipo de causa é o fim ou objectivo, aquilo em virtude do qual se faz algo; é o tipo de explicação
que damos quando nos perguntam por que motivo estamos a passear e nós respondemos «para manter a boa forma».
O quarto tipo de causa (a «causa final») tem um papel muito importante na ciência
aristotélica. Aristóteles investiga as causas finais não só da acção humana, como também do comportamento animal («Por que
razão tecem as aranhas teias?») e dos seus traços estruturais («Por que razão têm os patos membranas interdigitais?»). Existem
causas finais também para a actividade das plantas (tais como a pressão descendente das raízes) e dos elementos inanimados
(tais como o impulso ascendente das chamas). Às explicações deste tipo chamamos «teleológicas», a partir da palavra grega
telos, que significa fim ou causa final. Ao procurar explicações teleológicas, Aristóteles não atribui intenções a objectos
inconscientes ou inanimados, nem está a pensar em termos de um Arquitecto Supremo. Está, sim, a enfatizar a função de diversas
actividades e estruturas. Uma vez mais, estava mais inspirado na área das ciências da vida do que na química e na física.
Até mesmo os biólogos posteriores a Darwin continuam a procurar incessantemente a função, ao passo que ninguém, depois de
Newton, se lembrou de procurar uma explicação teleológica para o movimento dos corpos inanimados.
Palavras e Coisas
Ao contrário do seu trabalho nas ciências empíricas, há aspectos da filosofia
teórica de Aristóteles que podem ainda ter muito para nos ensinar. Merecem especial destaque as suas afirmações acerca da
natureza da linguagem, da natureza da realidade e da relação entre as duas.
Nas suas Categorias, Aristóteles apresenta uma lista dos diferentes tipos de coisas
que podem afirmar-se a propósito de um indivíduo. Essa lista contém 10 artigos: substância, quantidade, qualidade, relação,
espaço, tempo, postura, vestuário, actividade e passividade. Faria sentido dizer, por exemplo, que Sócrates era um ser humano
(substância), que media 1,50 m (quantidade), que era talentoso (qualidade), que era mais velho que Platão (relação), que vivia
em Atenas (espaço), que era um homem do século v a. C. (tempo), que estava sentado (postura), que envergava uma capa
(vestuário), que estava a cortar um pedaço de tecido (actividade) e que foi morto por envenenamento (passividade). Esta não
é uma simples classificação de predicados verbais: cada tipo de predicado irredutivelmente diferente, pensava Aristóteles,
representa um tipo de entidade irredutivelmente diferente. Em «Sócrates é um homem», por exemplo, a palavra «homem» representa
uma substância, nomeadamente Sócrates. Em «Sócrates foi envenenado», a palavra «envenenado» representa uma entidade chamada
«passividade», nomeadamente o envenenamento de Sócrates. Aristóteles pensava provavelmente que qualquer entidade possível,
fosse qual fosse a sua classificação inicial, seria, em última análise, atribuível a uma e apenas uma das 10 categorias. Assim,
Sócrates é um homem, um animal, um ser vivo e, em última análise, uma substância; o crime cometido por Egisto é um assassinato,
um homicídio, um acto de matar e, em última análise, uma actividade.
A categoria da substância é de importância primordial. As substâncias são coisas
como mulheres, leões e couves, que podem ter uma existência independente e ser identificados como indivíduos de uma espécie
particular; uma substância é, na despretensiosa expressão de Aristóteles, «um isto que é tal e tal» este gato ou esta
cenoura. As coisas que pertencem às outras categorias (às quais os sucessores de Aristóteles iriam chamar «acidentes») não
são independentes; um tamanho, por exemplo, é sempre o tamanho de qualquer coisa. Os artigos das categorias «acidentais» existem
apenas enquanto propriedades ou modificações de substâncias.
As categorias de Aristóteles não parecem ser exaustivas, e o seu grau de importância
parece bastante desigual. Mas, mesmo que as aceitemos como uma possível classificação de predicados, será correcto considerar
que um predicado representa qualquer coisa? Se «Sócrates corre» for verdadeira, deverá «corre» representar uma entidade de
qualquer tipo, tal como «Sócrates» representa Sócrates? Mesmo que digamos que sim, é evidente que tal entidade não pode ser
o significado da palavra «corre». Pois «Sócrates corre» faz sentido, mesmo sendo uma afirmação falsa; e por isso «corre» significa
algo, mesmo que não exista aquilo que representa neste caso, a corrida de Sócrates.
Se considerarmos uma frase como «Sócrates é branco», podemos, segundo Aristóteles,
pensar em «branco» como algo que representa a brancura de Sócrates. Nesse caso, o que representa o «é»? Parecem existir diversas
respostas possíveis a esta pergunta. a) Podemos dizer que não representa coisa alguma, limitando-se a marcar a relação entre
sujeito e predicado. b) Podemos dizer que representa a existência, no sentido em que se Sócrates é branco, é porque existe
qualquer coisa talvez o Sócrates branco, ou talvez a brancura de Sócrates que não existiria se Sócrates não fosse
branco. c) Podemos dizer que representa o ser, entendendo-se «ser» como um infinitivo substantivado como «correr». Se escolhermos
esta última resposta, parece ser necessário acrescentar que existem diversos tipos de ser: o ser denotado pelo «é» de um predicado
substancial como «¼ é um cavalo» é um ser substancial, enquanto o ser denotado pelo «é» de um predicado acidental como «¼
é branco» é um ser acidental. Em textos diferentes, Aristóteles parece ter privilegiado ora uma, ora outra interpretação.
A sua preferida é talvez a terceira. Nas passagens onde a expressa, retira dela a consequência de que o «ser» é um verbo de
múltiplos significados, um termo homónimo com mais de um sentido (tal como «saudável» possui sentidos diferentes, mas relacionados,
quando falamos de uma pessoa saudável, de uma pele saudável e de um clima saudável).
Afirmei anteriormente que, em «Sócrates é um homem», «homem» é um predicado da
categoria da substância que representa a substância Sócrates. Mas esta não é a única análise que Aristóteles faz de uma frase
deste género. Por vezes, esse «homem» parece representar antes a humanidade que Sócrates possui. Em tais contextos, Aristóteles
distingue dois sentidos de «substância». Um este tal e tal por exemplo, este homem, Sócrates é uma substância
primeira; a humanidade que ele possui é uma substância segunda. Quando fala nestes termos, Aristóteles esforça-se geralmente
por evitar os universais do platonismo. A humanidade que Sócrates possui é uma humanidade individual, a humanidade própria
de Sócrates; não é uma humanidade universal da qual todos os homens participem.
Movimento e Mudança
Uma das razões pelas quais Aristóteles rejeitou a Teoria das Ideias de Platão
foi porque esta, tal como a metafísica eleática, negava de modo fundamental a realidade da mudança. Tanto na Física como na
Metafísica, Aristóteles apresenta uma teoria da natureza da mudança concebida para enfrentar e desarmar o desafio de Parménides
e Platão. Trata-se da sua doutrina do acto e potência.
Se considerarmos uma substância, como por exemplo um pedaço de madeira, descobrimos
uma série de coisas verdadeiras no que respeita a essa substância num determinado momento, e uma série de outras coisas que,
não sendo verdadeiras no que a ela diz respeito nesse momento determinado, poderão vir a sê-lo noutro momento. Assim, a madeira,
apesar de ser fria agora, pode ser aquecida e transformada em cinza mais tarde. Aristóteles chamou «acto» àquilo que uma substância
é, e «potência» àquilo que uma substância pode vir a ser: assim, a madeira está fria em acto mas quente em potência, é madeira
em acto mas cinza em potência. A mudança do estado frio para o quente é uma mudança acidental que a substância pode sofrer
sem deixar de ser a substância que é; a mudança do estado madeira para o estado cinza é uma mudança substancial em que ocorre
uma mudança da própria substância. Em português podemos dizer, muito grosseiramente, que os predicados que contêm a palavra
«pode», ou qualquer palavra com um sufixo modal como «ável» ou «ível», significam potência; os predicados que não contêm essas
palavras significam acto. A potência, em contraste com o acto, é a capacidade de uma coisa para sofrer uma mudança de qualquer
tipo, seja através da sua própria acção, seja através da acção de qualquer outro agente.
Os actos envolvidos em mudanças chamam-se «formas», e o termo «matéria» é utilizado
como um termo técnico para designar aquilo que possui a capacidade para sofrer uma mudança substancial. Na nossa vida quotidiana,
estamos familiarizados com a ideia de que uma e a mesma parcela de um ingrediente pode ser primeiro uma coisa e depois outro
tipo de coisa. Uma garrafa contendo um quartilho de natas, depois de agitada, poderá conter manteiga e não natas. Aquilo que
sai da garrafa é a mesma coisa que entrou: nada lhe foi retirado nem acrescentado. Contudo, aquilo que sai é diferente em
género daquilo que foi introduzido. O conceito aristotélico de mudança substancial é derivado de casos como este.
A mudança substancial ocorre quando uma substância de um certo tipo se transforma
numa substância de outro tipo. Aristóteles chama matéria àquilo que permanece a mesma coisa ao longo da mudança. A matéria
assume primeiro uma forma e depois outra. Uma coisa pode mudar sem deixar de pertencer ao mesmo género natural, por meio de
uma mudança que não pertence à categoria da substância, mas a qualquer uma das outras nove categorias: assim, um ser humano
pode crescer, aprender, corar e ser subjugado sem deixar de ser humano. Quando uma substância sofre uma mudança acidental
retém sempre uma forma ao longo da mudança, nomeadamente a sua forma substancial. Um homem pode ser primeiro P e depois Q,
mas podemos sempre aplicar-lhe correctamente o predicado «¼ é um homem». E quanto à mudança substancial? Quando um pedaço
de matéria é primeiro A e depois B, haverá algum predicado na categoria da substância, «¼ é C», que possamos sempre aplicar
correctamente a essa matéria? Em muitos casos, não há dúvida de que existe tal predicado: quando o cobre e o estanho se transformam
em bronze, a matéria em mudança nunca deixa de ser metal ao longo do processo. Contudo, não parece ser necessário que tal
predicado deva existir em todos os casos; parece logicamente concebível que possa existir matéria que seja primeiro A e depois
B sem que exista qualquer predicado substancial que possamos aplicar-lhe sempre correctamente. Em todo o caso, Aristóteles
era dessa opinião; e chamou «matéria-prima» ao-que-é-primeiro-uma-coisa-e-depois-outra-sem-ser-coisa-alguma-o-tempo-todo.
A forma faz as coisas pertencerem a uma categoria particular; e, segundo Aristóteles,
aquilo que faz as coisas serem indivíduos dessa categoria particular é a matéria. No dizer dos filósofos, a matéria é o princípio
de individuação das coisas materiais. Isto significa, por exemplo, que duas ervilhas do mesmo tamanho e forma, por muito semelhantes
que sejam, por mais propriedades ou formas que possam ter em comum, são duas ervilhas e não uma, porque correspondem a duas
diferentes parcelas de matéria.
Não deve entender-se a matéria e a forma como partes de corpos, como elementos
a partir dos quais os corpos são feitos ou peças dos quais possam ser retiradas. A matéria-prima não poderia existir sem forma:
não precisa de assumir uma forma específica, mas tem de assumir uma forma qualquer. As formas dos corpos mutáveis são todas
formas de corpos particulares; é inconcebível que exista uma qualquer forma que não seja a forma de um qualquer corpo. A não
ser que queiramos cair no platonismo que Aristóteles explicitamente rejeitou com frequência, devemos aceitar que as formas
são logicamente incapazes de existir sem os corpos dos quais são as formas. De facto, as formas nem existem em si próprias,
nem são geradas do modo como as substâncias existem e são geradas. As formas, ao contrário dos corpos, não são feitas de coisa
alguma; dizer que existe uma forma de A significa apenas que existe uma substância que é A; dizer que existe uma forma de
cavalidade significa apenas que existem cavalos.
A doutrina da matéria e da forma é uma explicação filosófica de certos conceitos
que empregamos na nossa descrição e manipulação quotidianas das substâncias materiais. Mesmo aceitando que a definição é filosoficamente
correcta, fica ainda a questão: o conceito que procura clarificar terá realmente um papel a desempenhar numa explicação científica
do universo? É sabido que aquilo que na cozinha parece uma mudança substancial de entidades macroscópicas possa surgir-nos
no laboratório como uma mudança acidental de entidades microscópicas. A questão de saber se uma noção como a de matéria-prima
possui, a um nível fundamental, qualquer aplicação à física, onde falamos de transições entre matéria e energia, continua
a ser uma questão de opinião.
A forma é um tipo particular de acto, e a matéria um tipo particular de potência.
Aristóteles pensava que a sua distinção entre acto e potência constituía uma alternativa à dicotomia entre Ser e Não-Ser,
sobre a qual se apoiava a rejeição parmenídea da mudança. Uma vez que a matéria estava subjacente e sobrevivia a todas as
mudanças, fossem substanciais ou acidentais, não se punha a hipótese de o Ser se tornar Não-Ser, ou de algo surgir a partir
do nada. Uma das consequências desta explicação aristotélica, contudo, foi a ideia de que a matéria não poderia ter tido um
princípio. Séculos mais tarde, isto colocaria um problema aos aristotélicos cristãos que acreditavam na criação do mundo material
a partir do nada.
Alma, Sentidos e Intelecto
Uma das aplicações mais interessantes da doutrina da matéria e da forma de Aristóteles
pode encontrar-se nos seus estudos de psicologia, nomeadamente no tratado Da Alma. Para Aristóteles, os homens não são os
únicos seres que possuem alma ou psique; todos os seres vivos a possuem, desde as margaridas e moluscos aos seres mais complexos.
Uma alma é simplesmente um princípio de vida: é a fonte das actividades próprias de cada ser vivo. Diferentes seres vivos
possuem diferentes capacidades: as plantas crescem e reproduzem-se, mas não podem mover-se nem ter sensações; os animais têm
percepção, sentem prazer e dor; alguns podem mover-se, mas não todos; alguns animais muito especiais, nomeadamente os seres
humanos, conseguem também pensar e compreender. As almas diferem de acordo com estas diferentes actividades, por meio das
quais se exprimem. A alma é, segundo a definição mais geral que Aristóteles nos apresenta, a forma de um corpo orgânico.
Tal como uma forma, uma alma é um acto de um tipo particular. Neste ponto, Aristóteles
introduz uma distinção entre dois tipos de acto. Uma pessoa que não saiba falar grego encontra-se num estado de pura potência
no que diz respeito à utilização dessa língua. Aprender grego é passar da potência ao acto. Porém, uma pessoa que tenha aprendido
grego, mas que ao longo de um determinado tempo não faça uso desse conhecimento, encontra-se num estado simultâneo de acto
e potência: acto em comparação com a posição de ignorância inicial, potência em comparação com alguém que esteja a falar grego.
Ao simples conhecimento do grego, Aristóteles chama «acto primeiro»; ao facto de se falar grego chama «acto segundo». Aristóteles
utiliza esta distinção na sua descrição da alma: a alma é o acto primeiro de um corpo orgânico. As operações vitais das criaturas
vivas são actos segundos.
A alma aristotélica não é, enquanto tal, um espírito. Não é, de facto, um objecto
tangível; mas isso resulta do facto de ser (como todos os actos primeiros) uma potência. O conhecimento do grego também não
é um objecto tangível; mas não é, por isso, algo de fantasmagórico. Se há almas capazes, no seu conjunto ou em parte, de existirem
sem um corpo questão sobre a qual Aristóteles teve dificuldade em formar uma opinião tal existência independente
será possível não por serem simplesmente almas, mas por serem almas de um tipo particular com actividades vitais especialmente
poderosas.
Aristóteles fornece descrições biológicas muito concretas das actividades da nutrição,
crescimento e reprodução que são comuns a todos os seres vivos. O tema torna-se mais complicado, e mais interessante, quando
procura explicar a percepção sensorial (específica dos animais superiores) e o pensamento intelectual (específico do ser humano).
Ao explicar a percepção sensorial, Aristóteles adapta a definição do Teeteto de
Platão segundo a qual a sensação é o resultado de um encontro entre uma faculdade sensorial (como a visão) e um objecto sensorial
(como um objecto visível). Contudo, para Platão, a percepção visual de um objecto branco e a brancura do próprio objecto são
dois gémeos com origem na mesma relação; ao passo que, para Aristóteles, o ver e o ser visto são uma e a mesma coisa. Este
último propõe a seguinte tese geral: uma faculdade sensorial em acto é idêntica a um objecto sensorial em acto.
Esta tese aparentemente obscura é outra aplicação da teoria aristotélica do acto
e da potência. Permita-se-me ilustrar o seu significado por meio do exemplo do paladar. A doçura de um torrão de açúcar, algo
que pode ser saboreado, é um objecto sensorial, e o meu sentido do paladar, a minha capacidade para saborear, é uma faculdade
sensorial. A operação do meu sentido do paladar sobre o objecto sensível é a mesma coisa que a acção do objecto sensorial
sobre o meu sentido. Ou seja, o facto de o açúcar ter um sabor doce para mim é uma e a mesma coisa que o facto de eu saborear
a doçura do açúcar. O açúcar em si é sempre doce; mas só quando o coloco na boca a sua doçura passa de potência a acto. (Ser
doce é um acto primeiro; saber a doce, um acto segundo.)
O sentido do paladar não é mais do que o poder para saborear, por exemplo, a doçura
dos objectos doces. A propriedade sensorial da doçura não é mais do que ter um sabor doce para aquele que saboreia. Assim,
Aristóteles tem razão quando afirma que a propriedade em acção é uma e a mesma coisa que a faculdade em operação. Claro que
o poder para saborear e o poder para ser saboreado são duas coisas muito diferentes, a primeira relativa àquele que saboreia,
e a segunda relativa ao açúcar.
Este tratamento da percepção sensorial é superior ao de Platão porque nos permite
afirmar que as coisas do mundo possuem de facto qualidades sensoriais, mesmo quando não são percepcionadas. As coisas que
não estão a ser vistas são realmente coloridas, e o mesmo se aplica aos cheiros e aos sons, que existem independentemente
do facto de serem ou não percepcionados. Aristóteles pode afirmá-lo porque a sua análise do acto e da potência lhe permite
explicar que as qualidades sensoriais são de facto poderes de um determinado tipo.
Aristóteles serve-se também desta teoria quando lida com as capacidades racionais
e intelectuais da alma humana, fazendo uma distinção entre os poderes naturais, como o poder de queimar do fogo, e os poderes
racionais, como a capacidade de falar grego. E defende que se todas as condições necessárias para o exercício de um poder
natural estiverem presentes, esse poder será necessariamente exercido. Se pusermos um pedaço de madeira, adequadamente seco,
sobre uma fogueira, o fogo queimá-lo-á; não há alternativa. Contudo, tal não acontece com os poderes racionais, que podem
ser exercidos ou não, de acordo com a vontade do sujeito. Um médico que possua o poder para curar pode negar-se a exercitá-lo
se o seu paciente for insuficientemente rico; pode até utilizar os seus talentos médicos para envenenar o paciente, em vez
de o curar. A teoria dos poderes racionais de Aristóteles será usada para explicar o livre-arbítrio humano por muitos dos
seus sucessores.
A doutrina de Aristóteles sobre os poderes intelectuais da alma é algo inconstante.
Por vezes, o intelecto é apresentado como parte da alma; por conseguinte, e uma vez que a alma é a forma do corpo, o intelecto
assim concebido deverá morrer com o corpo. Noutros pontos, Aristóteles argumenta que, sendo o intelecto capaz de apreender
verdades necessárias e eternas, deverá ser em si mesmo, por afinidade, qualquer coisa de independente e indestrutível; e a
dada altura sugere que a capacidade para pensar é algo de divino e exterior ao corpo. Finalmente, numa passagem desconcertante,
objecto de intermináveis discussões ao longo dos séculos que se seguiriam, Aristóteles parece dividir o intelecto em duas
faculdades, uma perecível e a outra imperecível:
O pensamento, tal como o descrevemos, é aquilo que é em virtude
de poder tornar-se todas as coisas; ao passo que existe algo que é o que é em virtude de poder fazer todas as coisas: trata-se
de uma espécie de estado positivo como a luz; pois, num certo sentido, a luz transforma as cores em potência em cores em acto.
Neste sentido, o pensamento é separável, não passivo e puro, sendo essencialmente acto. E quando separado é exactamente aquilo
que é, e só ele é imortal e eterno.
A característica do intelecto humano que terá por vezes levado Aristóteles a entendê-lo
como separado do corpo e divino é a sua capacidade para o estudo da filosofia e, especialmente, da metafísica; e por isso
temos de explicar finalmente de que modo Aristóteles entendia a natureza desta sublime disciplina.
Metafísica
«Há uma disciplina», escreve Aristóteles no quarto livro da sua Metafísica, «que
teoriza sobre o Ser enquanto ser e sobre as coisas que pertencem ao Ser tomado em si mesmo.» A esta disciplina chama Aristóteles
«filosofia primeira», definindo-a noutro texto como o conhecimento dos primeiros princípios e das causas supremas. As outras
ciências, afirma, lidam com um tipo de ser particular, mas a ciência do filósofo diz respeito ao Ser universalmente e não
apenas parcialmente. Noutras obras, contudo, Aristóteles parece restringir o objecto da filosofia primeira a um tipo particular
de ser, nomeadamente a uma substância divina, independente e imutável. Existem três filosofias teóricas, afirma ele num outro
texto: a matemática, a física e a teologia; e a primeira e mais digna das filosofias é a teologia. A teologia é a melhor das
ciências teóricas porque lida com os seres mais dignos; precede a física e a filosofia natural, sendo mais universal do que
elas.
Ambos os conjuntos de definições até ao momento considerados tratam a filosofia
primeira como dizendo respeito ao Ser ou aos seres; diz-se também que é a ciência da substância ou substâncias. Em determinado
ponto, Aristóteles afirma que a velha questão «O que é o Ser?» equivale à questão «O que é a substância?» Assim, a filosofia
primeira pode ser considerada a teoria da substância primeira e universal.
Serão todas estas definições do objecto de estudo da filosofia equivalentes ou
mesmo compatíveis? Alguns historiadores, considerando-as incompatíveis, atribuíram os diferentes tipos de definições a diferentes
períodos da vida de Aristóteles. Mas, com algum esforço, podemos mostrar que é possível conciliá-las.
Antes de perguntarmos o que é o Ser enquanto ser, precisamos de esclarecer o que
é o Ser. Aristóteles utiliza a expressão grega to on do mesmo modo que Parménides: o Ser é seja o que for que é seja lá o
que for. Sempre que Aristóteles explica os sentidos de «to on», fá-lo explicando o sentido de «einai», o verbo «ser». O Ser,
no seu sentido mais lato, é tudo o que possa surgir, numa qualquer frase verdadeira, antes da forma verbal «é». Segundo esta
perspectiva, uma ciência do ser não seria tanto uma ciência daquilo que existe, mas antes uma ciência da predicação verdadeira.
Todas as categorias, diz-nos Aristóteles, exprimem o ser, porque qualquer verbo
pode ser substituído por um predicado que contenha o verbo «ser»: «Sócrates corre», por exemplo, pode ser substituído por
«Sócrates é um corredor». E todo o ser em qualquer categoria que não a da substância é uma propriedade ou modificação da substância.
Isto significa que sempre que temos uma frase sujeito-verbo na qual o sujeito não seja um termo para uma substância, podemos
transformá-la numa outra frase sujeito-verbo na qual o termo sujeito denota realmente uma substância uma substância
primeira, como um homem ou uma couve particulares.
Para Aristóteles, assim como para Parménides, é um erro equiparar simplesmente
o ser à existência. Quando discute, na Metafísica, os sentidos de «ser» e «é» do seu léxico filosófico, Aristóteles nem sequer
refere a existência como um dos sentidos do verbo ser, uma utilização que deverá distinguir-se da utilização do verbo com
um complemento num predicado, tal como em «ser um filósofo». Isto surpreende-nos, já que ele próprio parece fazer essa distinção
em livros anteriores. Nas Refutações Sofísticas, para contradizer a falácia segundo a qual aquilo em que se pensa deve existir
para ser pensado, Aristóteles distingue entre «ser F», no qual ao verbo se segue um predicado (por exemplo, «ser pensado»),
e apenas «ser». Aristóteles toma uma posição semelhante em relação ao ser F daquilo que deixou de ser, sem mais: por exemplo,
de «Homero é um poeta» não se segue que Homero é.
Será talvez um erro procurar na obra de Aristóteles um só tratamento da existência.
Quando os filósofos levantam questões a propósito das coisas que realmente existem e daquelas que não existem, é possível
que tenham em mente três contrastes diferentes: entre o abstracto e o concreto (por exemplo, sabedoria versus Sócrates), entre
o ficcional e o factual (por exemplo, Pégaso versus Bucéfalo) e entre o existente e o defunto (por exemplo, a Grande Pirâmide
versus o Colosso de Rodes). Aristóteles lida com os três problemas em obras diferentes. Lida com o problema das abstracções
quando discute os acidentes: são sempre modificações da substância. Qualquer afirmação sobre abstracções (como cores, acções,
mudanças) deve ser analisável como uma afirmação sobre substâncias primeiras concretas. Lida com o problema do ficcional conferindo
ao «é» o sentido de «é verdadeiro»: uma ficção é um pensamento genuíno, mas não é (ou seja, não é um pensamento verdadeiro).
O problema sobre o existente e o defunto, que lida com as coisas que existem e aquelas que deixaram de existir, é resolvido
pela aplicação da doutrina da matéria e da forma. Neste sentido, existir é ser matéria sob uma certa forma, é ser uma coisa
de certa categoria: Sócrates deixa de existir ao deixar de ser um ser humano. Para Aristóteles, o Ser inclui qualquer coisa
que exista de uma destas três maneiras.
Se o Ser é isso, o que é então o Ser enquanto Ser? A resposta é que não existe
tal coisa. É certamente possível estudar o Ser enquanto ser e procurar as causas do mesmo. Mas isto é entrar num tipo de estudo
especial, procurar um tipo de causa especial. Não é estudar um tipo de Ser especial nem procurar as causas de um tipo de Ser
especial. Mais do que uma vez, Aristóteles insistiu em que «Um A enquanto F é G» deve ser entendido como um sujeito A e um
predicado «é, enquanto F, G». Não deve ser entendido como consistindo num predicado «é G» que está ligado ao sujeito Um-A-enquanto-F.
Eis um dos seus exemplos: «Um bem pode ser conhecido como bem» não deve ser analisado como «um bem como bem pode ser conhecido»,
porque «um bem como bem» é uma expressão destituída de sentido.
Mas se «A enquanto F» é um pseudo-sujeito em «Um A enquanto F é G», também «A
enquanto F» é um pseudo-objecto em «Nós estudamos A enquanto F». O objecto desta frase é A, e o verbo é «estudamos enquanto
F». Estamos a falar não do estudo de um tipo particular de objecto, mas de um tipo particular de estudo, um estudo que procura
tipos particulares de explicações e causas, causas enquanto F. Por exemplo, quando estudamos fisiologia humana, estudamos
os homens enquanto animais, ou seja, estudamos as estruturas e funções que os homens têm em comum com os animais. Não existe
um objecto que seja um homem enquanto animal, e seria um disparate perguntar se todos os homens, ou se apenas alguns especialmente
embrutecidos, serão homens enquanto animais. É igualmente disparatado perguntar se o Ser enquanto Ser significa todos os seres
ou apenas alguns seres especialmente divinos.
Contudo, podemos estudar qualquer ser do ponto de vista particular do ser, ou
seja, podemos estudá-lo em virtude daquilo que tem em comum com todos os outros seres. Será talvez legítimo pensar que isto
é muito pouco: de facto, o próprio Aristóteles afirma que nada possui ser enquanto sua essência ou natureza: não há nada que
seja apenas ser e nada mais. Mas estudar algo enquanto um ser é estudar algo sobre o qual é possível fazer predicações verdadeiras,
precisamente do ponto de vista da possibilidade de fazer predicações verdadeiras sobre isso. A filosofia primeira de Aristóteles
não estuda um tipo particular de ser; estuda tudo, todo o Ser, precisamente enquanto tal.
Ora, a ciência aristotélica é uma ciência de causas, pelo que a ciência do Ser
enquanto ser será uma ciência que procura as causas da existência de qualquer verdade acerca de toda e qualquer coisa. Poderão
existir tais causas? Não é difícil conferir sentido ao facto de um tipo particular de ser possuir uma causa enquanto ser.
Se eu nunca tivesse sido concebido, nunca existiriam quaisquer verdades sobre mim; Aristóteles afirma que se Sócrates nunca
tivesse existido, as frases «Sócrates está bem» e «Sócrates não está bem» jamais poderiam ser verdadeiras. Portanto os meus
pais, que me deram existência, são as minhas causas enquanto ser. (São também as minhas causas enquanto ser humano.) Tal como
os pais deles, e os pais dos pais deles por sua vez, e, em última instância, Adão e Eva, no caso de descendermos todos de
um único par. E se algo tivesse dado existência a Adão e Eva, seria essa a causa de todos os seres humanos, enquanto seres.
Posto isto, podemos ver claramente de que modo o Deus cristão, o criador do mundo,
pode ser entendido como a causa do Ser enquanto ser a causa, pela sua própria existência, das verdades sobre si próprio,
e, como criador, a causa eficiente da possibilidade de toda e qualquer verdade acerca de toda e qualquer coisa. Mas no sistema
de Aristóteles, que não inclui um criador do mundo, qual é a causa do Ser enquanto ser?
No cume da hierarquia aristotélica dos seres estão os motores móveis e imóveis
que são as causas finais de toda a geração e corrupção. São assim, de certo modo, as causas de todos os seres perceptíveis
e corruptíveis, desde que sejam seres. A ciência que pretenda alcançar o motor imóvel estará a estudar a explicação de toda
e qualquer predicação verdadeira e, desse modo, de todo e qualquer ser enquanto ser. Na sua Metafísica, Aristóteles explica
que existem três tipos de substâncias: os corpos perecíveis, os corpos eternos e os seres imutáveis. Os dois primeiros tipos
pertencem à ciência da natureza, e o terceiro à filosofia. Aquilo que explicar a substância, afirma, explicará todas as coisas,
já que sem substâncias não existiriam mudanças activas nem passivas. Aristóteles avança então para a comprovação da existência
de um motor imóvel, concluindo que «de tal princípio dependem os céus e a natureza» ou seja, tanto os corpos eternos
como os corpos perecíveis dependem do ser imutável. E este é o divino, o objecto da teologia.
O motor imóvel é anterior às outras substâncias, e estas são anteriores a todos
os outros seres. «Anterior» é aqui utilizado não num sentido temporal, mas para denotar dependência: A é anterior a B, se
pudermos ter A sem B mas não B sem A. Se não existisse um motor imóvel, não existiriam os céus e a natureza; se não houvesse
substâncias, não haveria qualquer outra coisa. Podemos agora entender por que motivo Aristóteles afirmava que aquilo que é
anterior possui um poder explicativo mais elevado do que aquilo que é posterior, e por que razão a ciência dos seres divinos,
sendo anterior, pode entender-se como a mais universal das ciências: porque lida com seres que são anteriores, isto é, mais
recuados na cadeia da dependência. A ciência dos seres divinos é mais universal do que a ciência da física porque explica
tanto os seres divinos como os seres naturais; a ciência da física explica apenas os seres naturais e não os seres divinos.
Por fim, conseguimos compreender como se harmonizam as diferentes definições da
filosofia primeira. Qualquer ciência pode ser definida pela área que pretende explicar ou por meio da especificação dos princípios
pelos quais o explica. A filosofia primeira tem como área de explicação o universal: propõe-se apresentar um tipo de explicação
para toda e qualquer coisa e encontrar uma das causas da verdade de toda e qualquer predicação verdadeira. É a ciência do
Ser enquanto ser. Mas, se passarmos do explicandum para o explicans, podemos dizer que a filosofia primeira é a ciência do
divino; pois aquilo que explica fá-lo por referência ao motor imóvel divino. Não lida apenas com um só tipo de Ser, já que
faz a descrição não apenas do próprio divino, mas de tudo o que existe ou é alguma coisa. Mas é, por excelência, a ciência
do divino, já que explica tudo por referência ao divino e não, como a física, por referência à natureza. Assim, a teologia
e a ciência do Ser enquanto ser são uma e a mesma primeira filosofia.
Somos por vezes levados a pensar que a fase final da compreensão da metafísica
aristotélica é uma apreciação da natureza profunda e misteriosa do Ser enquanto Ser. Na verdade, o primeiro passo em direcção
a essa compreensão é a tomada de consciência de que o Ser enquanto Ser é um espectro quimérico engendrado por não se prestar
atenção à lógica aristotélica.
Anthony Kenny
Transcrito para este site por:
José Nogueira dos Reis |