A tese de Duhem
Donald Gillies
Entre as muitas contribuições importantes de Duhem para a filosofia da ciência, talvez a mais importante seja a sua formulação
daquilo a que chamarei tese de Duhem. Com a sua clareza e agudeza habituais, Duhem formula a sua tese numa secção com
o seguinte título:
Uma Experiência na Física Nunca Pode Condenar uma Hipótese Isolada, mas Apenas um Grupo Teórico no seu Todo
Nessa secção, Duhem expõe depois a tese da seguinte maneira:
Resumindo, o físico nunca pode sujeitar uma hipótese isolada a um teste experimental, mas apenas todo um grupo de hipóteses;
quando a experiência está em desacordo com as suas previsões, ele aprende que pelo menos uma das hipóteses que fazem parte
desse grupo é inaceitável e deve ser modificada; mas a experiência não indica qual deve ser mudada.
Para discutir a tese de Duhem, será útil introduzir a noção de enunciado de observação. Consideremos um enunciado
de observação qualquer enunciado sobre o qual, baseando-nos na observação e na experiência, podemos estar provisoriamente
de acordo quanto à sua verdade ou falsidade.
Segundo a tese de Duhem, uma hipótese isolada da física (h, digamos) nunca pode ser falsificada por um enunciado de observação,
O. Como uma generalização que abrange todas as hipóteses da física, isto é um pouco duvidoso. A física parece conter algumas
hipóteses falsificáveis. Considere-se, por exemplo, a primeira lei de Kepler, segundo a qual os planetas movem-se em elipses,
estando o Sol num foco. Suponha-se que observamos um grande número de posições de um certo planeta e que estas não se situam
numa elipse do tipo adequado. Assim, teremos certamente falsificado a primeira lei de Kepler. Podemos escrever da seguinte
maneira o esquema de falsificação, onde «~h» abrevia «Não é o caso que h»:
1)
Se h, então O.
Mas ~O.
Logo, ~h.
Aqui usa-se uma lei lógica conhecida por modus tollens.
No entanto, a tese de Duhem aplica-se a algumas hipóteses, e isto cria uma dificuldade para o falsificacionismo de Popper.
Considere-se, por exemplo, a primeira lei do movimento de Newton (T1, digamos). Certos argumentos indicam que T1
não é falsificável. Não podemos encontrar um O tal que o esquema 1 acima apresentado se aplica quando substituímos h por T1.
Toda a teoria de Newton (T, digamos) consiste em três leis do movimento (T1, T2 e T3)
e na lei da gravidade (T4). Deste modo, T é uma conjunção destas quatro leis (T = T1 & T2
& T3 & T4). De T em si, no entanto, não podemos derivar quaisquer consequências observáveis
que digam respeito ao sistema solar. Para fazer isso, precisamos de acrescentar a T diversas hipóteses auxiliares: por exemplo,
que nenhumas forças além das gravitacionais agem sobre os planetas, que as atracções inter-planetárias são pequenas relativamente
às que existem entre o Sol e os planetas, que a massa do Sol é muito maior que a dos planetas e assim por diante. Seja A a
conjunção de tais hipóteses auxiliares apropriadas para um certo caso. Temos agora o seguinte esquema:
2)
Se (T1 & T2 & T3 & T4 & A), então O.
Mas ~O.
Logo,
~(T1 & T2 & T3 & T4 & A).
Para além disso, de ~(T1 & T2 & T3 & T4 & A) segue-se que pelo
menos um elemento do conjunto (T1 & T2 & T3 & T4 & A) é falso,
mas não podemos dizer qual é falso.
Como a história da ciência mostra, é frequentemente um problema muito sério, na investigação científica, decidir que hipótese,
entre um grupo de hipóteses, deve ser modificada. Considere-se, por exemplo, a descoberta de Neptuno em 1846, realizada por
Adams e Leverrier. A partir da teoria T de Newton em conjunção com hipóteses auxiliares, os astrónomos foram capazes de calcular
a órbita teórica de Urano (o planeta mais distante então conhecido). Essa órbita teórica não estava de acordo com a órbita
observada. Isto queria dizer que T ou uma das hipóteses auxiliares era falsa. Adams e Leverrier conjecturaram que a hipótese
auxiliar sobre o número de planetas estava errada. Postularam um novo planeta, Neptuno, que estava para além de Urano, e calcularam
a massa e a posição que este teria que ter para causar as perturbações observadas na órbita de Urano. Neptuno foi devidamente
observado em 23 de Setembro de 1846, estando afastado só 52' da posição prevista.
Esta parte da história é bastante bem conhecida, mas houve alguns acontecimentos posteriores que também são relevantes
para a tese de Duhem. Outra dificuldade que na altura ocupava os astrónomos dizia respeito ao movimento anómalo do periélio
de Mercúrio, que avançava ligeiramente mais depressa do que devia segundo a teoria padrão. Leverrier tentou a abordagem que
se mostrara bem sucedida no caso da anomalia de Urano. Postulou um planeta, Vulcano, mais próximo do Sol que Mercúrio, com
uma massa e órbita, entre outras coisas, que explicavam o avanço no periélio de Mercúrio. No entanto, não se conseguiu encontrar
tal planeta.
Neste caso, a discrepância era muito pequena. Em 1898, Newcomb disse que o seu valor era 41.24" ±
2.09 por século, isto é, menos que um oitavo de grau por século. No entanto, esta pequena anomalia foi explicada com grande
sucesso pela teoria da relatividade geral (T'), que Einstein propôs em 1915 para substituir a teoria T de Newton. O valor
do avanço anómalo do periélio de Mercúrio que se seguia da teoria da relatividade geral era 42.80" por século -- um valor
dentro dos limites estabelecidos por Newcomb. Vemos que, embora a anomalia de Urano e a anomalia de Mercúrio fossem prima
facie muito semelhantes, num caso obteve-se sucesso alterando uma hipótese auxiliar, no outro, alterando a teoria principal.
Donald Gillies
Tradução de:
Micaela Regina e Daniel José
Excerto retirado da obra <Philosophy of Science in the Twentieth Century>, de Donald Gillies. Oxford: Blackwell, 1993.