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José Nogueira dos Reis - Fernando Pessoa Eros e Psiquê(...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdadesque vos foram dadas no Grau de Neófito, eaquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor,são, ainda que opostas, a mesma verdade.)(Do Ritual Do Grau De Mestre Do ÁtrioNa Ordem Templária De Portugal)Conta a lenda que dormiaUma Princesa encantadaA quem só despertariaUm Infante, que viriaDe além do muro da estrada Ele tinha que, tentado,Vencer o mal e o bem,Antes que, já libertado,Deixasse o caminho erradoPor o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida,Se espera, dormindo espera,Sonha em morte a sua vida,E orna-lhe a fronte esquecida,Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado,Sem saber que intuito tem,Rompe o caminho fadado,Ele dela é ignorado,Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino -Ela dormindo encantada,Ele buscando-a sem tinoPelo processo divinoQue faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuroTudo pela estrada fora,E falso, ele vem seguro,E vencendo estrada e muro,Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera,À cabeça, em maresia,Ergue a mão, e encontra hera,E vê que ele mesmo eraA Princesa que dormia. AutopsicografiaO poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve,Na dor lida sentem bem,Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de rodaGira a entreter a razão,Esse comboio de cordaQue se chama coração. Alberto Caeiro O Pastor Amoroso[255]Quando eu não te tinhaAmava a Natureza como um monge calmo a Cristo...Agora amo a NaturezaComo um monge calmo à Virgem Maria,Religiosamente, a meu modo, como dantes,Mas de outra maneira mais comovida e próxima...Vejo melhor os rios quando vou contigoPelos campos até à beira dos rios;Sentado a teu lado reparando nas nuvensReparo nelas melhor -Tu não me tiraste a Natureza...Tu mudaste a b


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(...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor,
são, ainda que opostas, a mesma verdade.)

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)

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José Nogueira dos Reis - Lisboa, cabeça da revolução. Os acontecimentos de Lisboa relacionados com a revolução que levou ao trono a dinastia de Avis compreendem quatro fases capitais. A primeira é a dos tumultos de 6 de Dezembro de 1383, por ocasião do assassínio do conde de Andeiro e que representam o deflagrar da reacção popular contra D. Leonor Teles, sob a chefia do Mestre de Avis. A Revolução de 1383 - 1385 segundo Marcelo Caetano (2). Para Marcelo Caetano existe uma modificação sensível nos privilégios dos mercadores de Lisboa, devido à revolução «que levou ao trono a dinastia de Avis». É portanto uma Revolução Corporativa ! O CONCELHO DE LISBOA NA CRISE DE 1383 1385 1 Lisboa, cabeça da revolução. Os acontecimentos de Lisboa relacionados com a revolução que levou ao trono a dinastia de Avis compreendem quatro fases capitais. A primeira é a dos tumultos de 6 de Dezembro de 1383, por ocasião do assassínio do conde de Andeiro e que representam o deflagrar da reacção popular contra D. Leonor Teles, sob a chefia do Mestre de Avis. A segunda é a das assembleias de 15 e 16 do mesmo mês nas quais a arraia-miúda, primeiro, e os homensbons da cidade, depois, proclamaram regente o Mestre de Avis, com o título de Regedor e Defensor do Reino. A terceira é a dos preparativos para resistir ao cerco iminente que o rei de Castela vai fechar ao redor da cidade de Lisboa, preparativos que são acompanhados de uma série de providências a favor da capital, dadas entre 1 de Abril e 11 de Maio de 1384. A quarta é a da solene confirmação da regência e ratificação da homenagem dos três estados, após o levantamento do cerco, em 2 e 6 de Outubro de 1384, quando foi resolvido decidir a crise mediante a convocação das Cortes de Coimbra. Os factos da primeira fase só têm interesse na medida em que explicam os seguintes. A narração de Fernão Lopes é suficientemente elucidativa do seu decurso e carácter. Para a história do concelho, interessam agora as três restantes. 2 Escolha revolucionária do regente em Dezembro de 1383. - Os acontecimentos de 6 de Dezembro tinham representado a reacção contra a influência do conde de Andeiro no governo e contra o desbragamento da rainha antipática ao povo de Lisboa ao qual fizera pagar duramente a resistência manifestada contra a sua subida ao trono aquando do casamento com D. Fernando. Mas quando se viu que D. Leonor Teles saía para Alenquer e apelava para seu genro e rei de Castela e mal se soube que este se aprestava para vir quanto antes castigar a cidade revoltada, a gente sisuda começou a pesar os prós e os contras da situação: se, por um lado, ceder acarretaria inevitável castigo, por outro, como resistir com os fracos recursos locais às poderosas forças em via de coligar-se? Fernão Lopes narra detidamente todas as inquietações e hesitações destes dias (caps. 17 a 25). As razões de prudência vinham juntar-se os escrúpulos da legitimidade monárquica e da fé jurada aos pactos. A maior parte da nobreza pronunciava-se pela rainha e o levantamento de Lisboa era tido como mera «sandice de dois sapateiros e dois alfaiates». O Mestre de Avis, neste lance, chegou a pensar em partir para Inglaterra sob a influência dos mais tímidos e houve que demovê-lo por todas as maneiras. Quem o demoveria? Meia dúzia dos cavaleiros e legista, que o cercavam 1 e, sobretudo, a gente do povo que sabia quanto lhe custara anteriormente o movimento capitaneado por Fernão Vasques e que, tendo lutado anos a fio, durante o reinado de D. Fernando, contra os Castelhanos, estava causticada pelas violências e depredações por eles cometidas. Quando o Mestre saía à rua era o povo, os tais sapateiros e alfaiates de que os cortesãos da rainha escarneciam, que o cercava e lhe tomava as rédeas do cavalo a suplicar-lhe que o não deixasse e que assumisse a regência do Reino para o defender. Envolvido na atmosfera de simpatia popular, animado pelos seus cavaleiros e legistas, confirmado pelas predições de Frei João da Barroca, o Mestre decidiu-se a ficar e mandou proceder à convocação de uma assembleia popular em S. Domingos. Em 15 de Dezembro reuniu-se no mosteiro «muito povo da cidade» a quem D. João arengou, expondo o seu desinteresse pessoal do Poder, mas prestando-se a assumir a regência e defesa do Reino desde que lhe prometessem todos ajuda-lo incondicionalmente a suportar tão graves encargos (I, cap. 26). A resposta foi pronta: a multidão em coro gritou-lhe que ficasse, prometeu-lhe consagrar vidas e bens à empresa da guerra «a qualquer aventura por honra do reino e sua defensão deles» -e aclamou alegremente a final anuência do Mestre de Avis a chefiar a revolução. Logo repararam, porem, que faltavam na reunião «muitos honrados cidadãos», burgueses das famílias consideradas e ricas da cidade, proprietários, mercadores, gente experiente da administração urbana cujo voto convinha obter em negócio de tamanha monta. A separação, verificada em todas as agitações municipais ocorridas por essa Europa fora na segunda metade do século XIV, entre o «povo meudo», «os meudos» ou o «povo comum» (le commun peuple, les menus gens, il popolo minuto) e os «cidadãos honrados» ou os «bons do concelho», começa a marcar-se na crise portuguesa, que não tardará a opor francamente, em muitos lugares do Reino, os «grandes» aos «pequenos» (I, cap. 43). No dia 16 reuniu-se, pois, a assembleia municipal na «câmara do concelho». O Mestre tornou a falar expondo o que se passara na véspera; mas, ao terminar, acolheu-o um silêncio embaraçado. Os «bons» eram os que tinham a perder. A revolução era uma aventura em que -não queriam empenhar a sua responsabilidade. E cochichavam uns com os outros, sem se atreverem a pronunciar-se abertamente. A reunião, porém, fora assistir a plebe, como habitualmente sucedia quando estavam em causa graves interesses da cidade. Respeitosa de começo, o prolongamento da indecisão dos maiorais entrou de enfrenesiá-la. De entre o público destacou-se o tanoeiro Afonso Anes Penedo que, pondo a mão numa espada que tinha à cinta, increpou os burgueses de maus patriotas, estimulando-os a ratificar a deliberação popular. Mas nem assim os notáveis se resolveram. E então o tanoeiro não hesitou em proferir ameaças formais. Lembrou-lhes que, por ele, nada mais tinha a perder do que a cabeça mas, por isso mesmo, se os maiorais o não quisessem acompanhar haviam também de responder pelas deles antes de saírem dali... «E todollos que hi estavam do poboo meudo, aquella mesma rrazom disserom.» Perante o alvoroço e vendo que lhes não era possível resolver coisa diversa da que o povo exigia, os homens-bons outorgaram quanto na véspera tinha sido prometido em S. Domingos. Dessa resolução da assembleia municipal diz Fernão Lopes que se lavrou auto ali mesmo assinado (I, cap. 26). Infelizmente, não nos chegou o original, nem cópia, desse documento, que representou, por um lado, a capitulação do patriciado urbano perante a vontade do povo miúdo e, por outro, a investidura revolucionária do Mestre de Avis na regência do Reino. Conta-nos o cronista como o novo regente logo mandou fazer selos, constituiu conselho e nomeou desembargadores do Paço, vedores da Fazenda, tesoureiro da moeda e corregedor da cidade. E acrescenta: «E foi logo ordenado na cidade que vinte e quatro homens, dous de cada mester, tivessem o encargo de estar na Camara para que toda a cousa que se houvesse de ordenar por bom regimento e serviço do Mestre fosse com seu acordo deles». Esta entrada dos mesteres no governo urbano merece, porém, atenção especial como facto de relevo na história da administração municipal. (...) 11 Uma nova cidade e um novo foral. - Ficam assim indicadas as mais importantes concessões feitas por D. João I à cidade de Lisboa em satisfação das reivindicações por ela formuladas. Se agora compararmos o estatuto jurídico da cidade tal como se nos apresenta após as Cortes de 1385 com o que ela gozara sob o foral de 1179 veremos que só dois séculos depois da instituição do concelho pelo primeiro rei é que Lisboa sacudiu, e revolucionariamente, os encargos que sobre ela pesavam em benefício da coroa. Durante esses dois séculos tinham sido insignificantes as alterações introduzidas na constituição municipal, e as questões suscitadas por ela nas Cortes ou em disputas com a coroa eram sempre -as mesmas 42. Mas o comércio fora tomando vulto dentro das muralhas da cidade. A posição privilegiada do seu porto, a meio da rota dos navios que a partir dos meados do século XIII ligavam as cidades italianas às do Norte da Europa, nomeadamente as flamengas, tinha fatalmente de interessar os Lisboetas nas operações especulativas do comércio marítimo. Simultaneamente, a pequena indústria caseira dos mesteres ia-se desenvolvendo e sofrendo com desagrado a estreita tutela que a oligarquia municipal lhe impunha através da almotaçaria. Que população contaria a cidade nessa altura? Escasseiam totalmente dados que permitam um cômputo com alguma probabilidade de exactidão. Mas sabemos que as cidades medievais eram pequenas 43. A data da outorga do seu primeiro foral, anos depois da conquista cole a qual coincidira a explosão de parte dos habitantes mouros, obrigados a viver nos arredores, Lisboa não poderia ter grande número de povoadores: dez, quinze mil? A população cresceu, decerto, até à peste negra que a sangrou em 1348 e a reduziu a metade, senão a um terço. Daí por diante não faltaram novas epidemias, fomes e cercos, enquanto as leis que a rarefacção de mão-de-obra impôs forçavam a uma estabilização populacional empecedora das migrações que alimentam o urbanismo. Londres calcula-se que teria em 1377 entre 30 e 40 000 habitantes 44. Se considerarmos as circunstâncias de Lisboa e a área ocupada em 1385, se olharmos a que século e meio depois os cálculos dos autores do Censo de 1527 e de Cristóvão Rodrigues de Oliveira não conduzem a mais de 50 000 habitantes, não será andar muito longe da verdade computar o número dos moradores na época do levantamento do Mestre de Avis entre 20 e 30 000. Quarenta anos depois, o rol dos besteiros do conto atribui à cidade 300 besteiros. Sabe-se como toda a proporção entre o número de besteiros e o total da população é arbitrária; mas se supusermos 1 besteiro por 100 habitantes, teremos os 30 000 que nessa altura corresponderão a uns 20 a 25 000 na época de que nos estamos ocupando. Número puramente conjectural, o de 25 000 tem, todavia, alguns vesos de não andar muito longe da realidade. É esta nova cidade, mais populosa, onde o castelo deixou de ter a importância primitiva até ser arrasado, como um símbolo, na crise de 1385, onde os proprietários rurais são minoria e a agricultura interna quase não conta, mas que, em compensação, vê aumentar o número dos mercadores e armadores ocupados no comércio interno e internacional, desenvolver a classe, dos mesteirais, e crescer o número dos legistas e dos funcionários da coroa, é esta nova cidade que D. João I dota de um estatuto novo onde pouco resta do antigo foral. 12 Recapitulemos em breve resumo os traços gerais desse estatuto segundo se depreendem das diversas mercês feitas entre Abril de 1384 e Abril de 1385: a) Junto dos juízes, vereadores e procurador funciona um colégio composto por dois homens-bons de cada mester cujo voto deliberativo é indispensável para a aprovação de posturas ou ordenações, lançamento de impostos e eleição das autoridades e funcionários municipais. b) Só o concelho pode prover ofícios da administração da cidade, sendo nulas as cartas régias que deles façam mercê; carecem de confirmação da coroa unicamente a eleição dos juízes e a designação de advogados e procuradores da cidade. c) Todos os escrivães dos cargos municipais gozam de fé pública. d) A jurisdição sobre os homens do mar (que pertencera ao Almirante), sobre os estrangeiros e sobre os reguengos do termo - Sacavém, Unhos, Frielas, Camarate, Alverca, Barcarena e outros - pertence, directamente ou em última instância, aos juízes da cidade. e) Sobre os moradores da cidade não pesariam mais os encargos que o foral ou o costume estabeleciam a favor da coroa; o rei deixa de possuir alfândegas e tendas dentro de Lisboa. f) Para os impostos lançados pelo concelho com destino aos encargos municipais ou para serviço do rei, todos os moradores contribuiriam, mesmo que fossem fidalgos ou por outra razão isentos. g) Os cidadãos de Lisboa podiam trazer armas em todo o reino e estavam isentos do dever de albergar em suas casas os fidalgos e oficiais do rei, bens como de os abastecer e fornecer contra vontade; no caso de guerra, a defesa local tinha primazia sobre qualquer outro serviço militar. h) Os cidadãos honrados da cidade só seriam metidos a tormentos nos casos em que o pudessem ser os fidalgos. i) Era livre a imigração na cidade de gente vinda de qualquer ponto do reino. j) A almotaçaria continuava a ser função exclusiva do concelho, que a exerceria com o acordo dos mesteres. Portanto, tradicional governo oligárquico do concelho de Lisboa é temperado pelo acesso dos mesteres aos órgãos municipais: o concelho adquire a preciosa liberdade de trânsito para os seus mercadores, que passam a poder percorrer armados o País inteiro, sem serem molestados pela concorrência estrangeira e sem terem de se deter a cada passo nas alfândegas interiores para pagar :portagem e deixar inspeccionar as mercadorias; e os cidadãos de Lisboa adquirem importantes prerrogativas para à sua segurança, para a inviolabilidade do seu domicílio e pára a posse dos seus bens. ----------------------------------------------------------- 1 Eram os que formavam o Conselho do Mestre e a cuja acção dá especial relevo (sem referir a do povo) a Cronica do Condestabre, cap. xx. 42 Veja-se o nosso livro sobre A Administração Municipal de Lisboa durante a 1.° Dinastia (1179-1383). 43 Pirenne, Hist. économique ..., pág. 312. 44 S. Thrupp, The merchant Class... pág. 1. Fonte: Marcelo Caetano, «O Concelho de Lisboa na crise de 1383-1385», Anais da Academia Portuguesa de História, II série, volume IV (1953), páginas 179 a 247.
 

José Nogueira dos Reis

 Fontes do conhecimento

1.

«[ ...] Crê-se habitualmente que a existência de erros de percepção mostra que os nossos sentidos são falíveis, mas seria mais exacto dizer que o nosso juízo é falível. Na realidade os nossos sentidos não nos enganam: somos induzidos (com base nas nossas percepções sensoriais) a emitir juízos que posteriormente verificamos serem falsos; se tivéssemos suspendido o juízo - se não tivéssemos tomado o burro por um cavalo - não teria havido erro. O erro vem sempre do juízo, não da sensação. Tudo o que os sentidos podem fazer é dar-nos experiências que, por vezes, classificamos erradamente. Também é interessante observar que, quando cometemos um erro de percepção por causa de experiências sensoriais incompletas ou fragmentárias, são sempre as experiências sensoriais posteriores que nos levam a descobrir o erro. [ ...] Assim, o facto de existirem erros baseados em experiências sensoriais não mostra que temos de recorrer a algo que esteja para além da experiência sensorial; só mostra que necessitamos de mais experiência sensorial, e que se tivéssemos aguardado por ela não teríamos emitido o juízo errado.

 

 

2.

Antes de poder ser considerada conhecimento, toda a experiência sensorial requer o juízo. As experiências sensoriais que se têm num certo momento não constituem conhecimento; primeiro tem que se julgar [ efectuar um juízo] que isto é uma cadeira, que isto é um livro, e assim sucessivamente. E é a proposição que é considerada verdadeira ou falsa; a experiência sensorial em si mesma não é verdadeira nem falsa: tem-se ou não se tem. Fornece a base para um juízo de percepção, mas por si mesma não é suficiente para constituir tal juízo. O papel do juízo na percepção passa facilmente depercebido porque em muitos casos só usamos conceitos como "cadeira" e "árvore", tão familiares que parece, quando efectuamos o juízo, que estamos somente a receber uma informação da experiência sensorial sem incorporar nenhum conceito. Mas pode-se mostrar facilmente que isto é falso quando temos casos um pouco mais complexos: "Oiço um Lincoln Continental que vem pela colina", pode alguém dizer; e outra pessoa com a mesma (ou muito semelhante) experiência acústica pode não a reconhecer como o som de um Lincoln Continental: não interpreta a sua experiência auditiva como experiência de um Lincoln Continental. Assim, para emitirmos juízos de percepção, não só temos de ser capazes de percepcionar, mas também de saber o significado das palavras e como aplicá-las ao que percepcionamos.

Até agora temos estado a falar só dos chamados "sentidos externos", aqueles através dos quais obtemos informação do mundo exterior. Mas também existem os "sentidos internos", que nos colocam em relação com os nossos estados internos (sentimentos, atitudes, disposições, dores e prazeres), assim como com as nossas próprias operações mentais como pensar, crer, perguntar. Nestes casos não possuímos órgãos dos sentidos; no entanto, estamos capacitados para enunciar certas proposições. Mas as únicas proposições que estamos capacitados para emitir são aquelas que versam sobre os nossos próprios estados internos: por exemplo, tenho uma dor de dentes, tenho sono, sinto-me doente esta manhã, estou a pensar nas férias do próximo verão, etc. Em todos estes casos, o facto de estarmos a sofrer a experiência em questão é a única garantia que possuímos ou necessitamos da verdade da proposição. Se tiver uma dor de cabeça, isso é tudo o que preciso para tornar verdadeira a proposição "tenho uma dor de cabeça". A proposição "tenho uma dor de cabeça" não versa sobre nada mais que a minha experiência actual, de modo que possuir a experiência é suficiente para tornar a proposição verdadeira. [ ...] »

 

 

«[ ...] Mas a experiência dos sentidos não é a nossa única fonte de conhecimento. Se alguém nos perguntar "como sabe que 74 mais 89 é igual a 163?", não responderemos "olhei e vi", mas sim "fiz a conta". Recorremos ao cálculo, não à visão, à audição ou ao tacto. Chegámos à resposta por meio de raciocínio. O raciocínio é uma fonte de conhecimento, embora [ ...] "raciocínio" não seja o único sentido do termo "razão".

Uma pessoa raciocina quando utiliza certos enunciados como base para produzir outro enunciado ou outros enunciados mais; ou, por outras palavras, quando utiliza um ou mais enunciados, chamados premissas de um argumento, para inferir outro enunciado, chamado conclusão do argumento. Assim, usamos os enunciados "tenho mil e duzentos escudos no bolso" como base para inferir o enunciado "tenho menos de dois contos no bolso".

[ ...] O tipo de raciocínio mais familiar, que com frequência se toma como modelo de todo o raciocínio, é o dedutivo. Num argumento dedutivo a conclusão deve seguir-se logicamente das premissas; ou, por outras palavras, se as premissas do argumento forem verdadeiras, a conclusão deverá ser verdadeira. [ ...] A conclusão [ ...] está contida nas premissas no sentido de que é deduzível das premissas.

[ ...] Mas nem todo o raciocínio é dedutivo. Também argumentamos indutivamente: podemos conhecer a verdade das premissas, mas não saber ainda que a conclusão é verdadeira; as premissas proporcionam elementos de juízo para a conclusão, mas não elementos de juízo completos. Ou, por outras palavras, mesmo que as premissas sejam verdadeiras, não tornam a conclusão certa, mas somente provável, em maior ou menor grau.

[ ...] O raciocínio indutivo não passa sempre de "um, dois, três..." para "todos". Por vezes a conclusão não é acerca de todas as coisas de certo tipo, mas acerca de uma só coisa, ou desta coisa. Podemos argumentar:

Foi encontrado sangue da Susana nas roupas da Isabel.

Viu-se a Isabel entrar na casa da Susana poucos minutos antes da morte desta.

Encontrou-se a Susana com uma ferida de navalha no coração.

Depois encontrou-se sangue da Susana na navalha da Isabel.

Uma hora depois viu-se a Isabel a tentar evitar a polícia. Etc.

Logo, a Isabel matou a Susana.

Esta conclusão tem uma certa probabilidade com base nos elementos de juízo apresentados nas premissas. Mas pode não ser verdadeira: os dados são circunstanciais e todas as pistas podem ter sido colocadas por outra pessoa. Mesmo que a Isabel confesse o crime, não podemos ter a certeza de que é culpada, pois pode ter feito uma confissão falsa. Habitualmente, os jurados têm de dar o seu veredicto baseando-se na probabilidade; só desejam que o grau de probabilidade seja o maior possível (em casos de crime, " para além de qualquer dúvida razoável"). Mas, no entanto, a probabilidade não é certeza, e é muito difícil encontrar a certeza nestas coisas. Podia-se formular a questão de forma diferente e dizer que uma certeza, mas a proposição que é certa não é a de que a Isabel matou a Susana, mas sim a de que é provável, com base nos indícios disponíveis, que a Isabel tenha matado a Susana. Sem dúvida que a probabilidade é preferível à ausência total de elementos de juízo, e em inumeráveis situações da vida diária ela é tudo o que temos.

Que é que faz com que as proposições das premissas tornem provável a conclusão? Se uma das premissas fosse "a Isabel vestia um fato negro", isso não contaria como elemento de juízo em nenhum sentido, a menos que a pessoa que saiu de casa da Susana depois do assassinato tivesse sido vista com um fato negro. No argumento indutivo apoiamo-nos em certas leis da natureza. [ ...] As leis da natureza formulam certas uniformidades recorrentes no decurso da nossa experiência.»

JOHN HOSPERS, Introducción al análisis filosófico (tradução minha a partir do castelhano)

Transcrito para este site por:

José Nogueira dos Reis